quinta-feira, 19 de setembro de 2013

20 - BRIENNE



A leste de Lagoa da Donzela, os montes erguiam-se, selvagens, e os pinheiros fechavam-se em volta deles como uma hoste de soldados cinza-esverdeados.
Lesto Dick dizia que a estrada costeira era o caminho mais curto e mais fácil, por isso raramente perdiam de vista a baía. As vilas e aldeias ao longo da costa iam se tornando menores à medida que avançavam, e também menos frequentes. Ao cair da noite procuravam uma estalagem. Crabb partilhava a cama comum com outros viajantes, enquanto Brienne pagava um quarto para si e para Podrick.
- Seria mais barato se dormíssemos todos na mesma cama, senhora - dizia Lesto Dick. - Podia pôr sua espada entre nós. Velho Dick é um tipo inofensivo. Cavalheiresco como um cavaleiro e tão honesto como o dia é longo.
- Os dias estão ficando mais curtos - Brienne observou.
- Bom, pode ser que sim. Se não confia em mim na cama, podia enrolar-me no chão, senhora.
- No meu chão, não.
- Um homem pode pensar que não tem nenhuma confiança em mim.
- A confiança é ganha. Como o ouro.
- Como quiser, senhora - Crabb respondeu - mas lá em cima, ao norte, onde a estrada acaba, àquela altura terá de confiar no Dick. Se eu quisesse lhe roubar o ouro à ponta da espada, quem é que me impediria?
- Não tem uma espada. Mas eu sim.
Brienne fechou a porta entre eles e ficou ali, à escuta, até ter certeza de ele ter ido embora. Por mais lesto que fosse, Dick Crabb não era nenhum Jaime Lannister, nenhum Rato Louco, nem sequer um Humfrey Wagstaff. Era magro e desnutrido, e sua única armadura era um meio-elmo amassado e salpicado de ferrugem. Em vez de espada, usava uma velha adaga cheia de entalhes. Enquanto estivesse acordada, o homem não lhe constituía nenhuma ameaça.
- Podrick - disse - chegará uma hora em que não haverá mais estalagens para nos fornecer abrigo. Não confio em nosso guia. Quando acamparmos, pode me vigiar enquanto durmo?
- Ficar acordado, senhora? Sor - o garoto refletiu. - Tenho uma espada. Se Crabb tentar lhe fazer mal, posso matá-lo.
- Não - ela respondeu com severidade. - Não deve tentar lutar com ele. Tudo que peço é que o vigie enquanto durmo, e que me acorde se ele fizer alguma coisa suspeita. Vai descobrir que acordo depressa.
Crabb mostrou suas verdadeiras cores no dia seguinte, quando pararam para dar água aos cavalos. Brienne teve de se esconder atrás de alguns arbustos para esvaziar a bexiga.
No momento em que se agachava, ouviu Podrick dizer:
- O que está fazendo? Saia daí - acabou o que tinha para fazer, puxou os calções para cima e, quando voltou à estrada, encontrou Lesto Dick limpando farinha dos dedos.
- Não vai encontrar dragões nos alforjes - disse-lhe. - Transporto ouro comigo - uma parte encontrava-se na bolsa que trazia no cinto, o resto estava escondido num par de bolsos cosidos no interior do vestuário. A gorda bolsa que tinha dentro do alforje estava cheia de cobres grandes e pequenos, tostões e meios tostões, pequenas moedas de prata e estrelas... e fina farinha branca, para torná-la ainda mais gorda. Comprara a farinha do cozinheiro das Sete Espadas na manhã em que partira de Valdocaso.
- Dick não tinha más intenções, senhora - torceu seus dedos sujos de farinha para mostrar que não tinha armas. - Queria só ver se tinha os dragões que me prometeu. O mundo está cheio de mentirosos, prontos para enganar um homem honesto. Não que você seja um deles.
Brienne esperava que ele fosse melhor guia do que era ladrão.
- É melhor irmos andando - voltou a montar.
Dick costumava cantar enquanto viajavam; nunca era uma canção inteira, só um pedaço desta, um verso daquela. Brienne suspeitava que o homem pretendia seduzi-la, para fazê-la baixar a guarda. Por vezes tentava convencer Brienne e Podrick a cantar com ele, mas sem sucesso. O garoto era tímido demais, e tinha a língua muito presa, e Brienne não cantava. Cantava para o seu pai? Perguntara-lhe uma vez a Senhora Stark, em Correrrio. Cantava para Renly? Não o fizera, nunca embora tivesse desejado... tinha-o desejado...
Quando não estava cantando, Lesto Dick falava, regalando-os com histórias sobre a Ponta da Garra Rachada. Cada vale sombrio tinha seu senhor, ele dizia, todos unidos apenas pela desconfiança que sentiam por forasteiros. Em suas veias, o sangue dos Primeiros Homens corria escuro e forte.
- Os ândalos tentaram tomar Garra, mas sangramos os tipos nos vales e os afogamos nos pântanos. Só que o que os filhos deles não conseguiram conquistar com as espadas, as lindas filhas conquistaram com beijos. Casaram com as Casas que não conseguiam conquistar, ah sim.
Os reis Darklyn de Valdocaso tinham tentado impor seu domínio sobre Ponta da Garra Rachada; os Mooton de Lagoa da Donzela também, e mais tarde foi a vez dos altivos Celtigar da Ilha dos Caranguejos. Mas os homens da Garra conheciam seus pântanos e florestas como nenhum forasteiro podia conhecer, e quando eram muito pressionados, desapareciam nas cavernas que transformavam seus montes em colmeias. Quando não lutavam com aspirantes a conquistadores, lutavam uns contra os outros. Suas rixas de sangue eram tão profundas e escuras como os pântanos entre os seus montes. De tempos em tempos, algum campeão trazia a paz à Ponta, mas nunca durava mais do que sua vida. Lorde Lucifer Hardy fora um dos grandes, e os Irmãos Brune também. O Velho Crackbones ainda mais, mas os Crabb eram os mais poderosos de todos. Dick ainda se recusava a acreditar que Brienne nunca tivesse ouvido falar de Sor Clarence Crabb e de suas façanhas.
- Por que eu mentiria? - Brienne lhe perguntou. - Todos têm seus heróis locais. No lugar de onde venho, os cantores cantam sobre Sor Galladon de Morne, o Cavaleiro Perfeito.
- Sor Gallaquem do quê? - o homem soltou uma fungadela. - Nunca ouvi falar. Por que diabos era ele assim tão perfeito?
- Sor Galladon foi um campeão de tal valor que a própria Donzela perdeu o coração por ele. Deu-lhe uma espada encantada como símbolo do seu amor. Chamava-se a Justa Donzela. Nenhuma espada vulgar era capaz de pará-la, e nenhum escudo podia aguentar seu beijo. Sor Galladon usava orgulhosamente a Justa Donzela, mas só por três vezes a desembainhou. Não queria usá-la contra os mortais, pois era tão potente que desequilibraria qualquer luta.
Crabb achou aquilo hilariante.
- O Cavaleiro Perfeito? Soa mais ao Palerma Perfeito. Para que raio serve uma espada mágica se não for para usá-la?
- Honra - ela respondeu. - O motivo é a honra.
Aquilo só conseguiu fazê-lo rir mais alto.
- Sor Clarence Crabb seria capaz de limpar o rabo peludo de seu Cavaleiro Perfeito, senhora. Se algum dia tivessem se encontrado, era mais uma cabeça cheia de sangue na prateleira dos Murmúrios, cá para mim. “Devia ter usado a espada mágica” ela diria a todas as outras cabeças. “Devia ter usado a merda da espada."
Brienne não pôde evitar sorrir.
- Talvez - admitiu - mas Sor Galladon não era nenhum tolo. Contra um inimigo de dois metros e quarenta, montado num auroque, podia perfeitamente ter desembainhado a Justa Donzela. Usou-a uma vez para matar um dragão, segundo dizem.
Lesto Dick não se deixou impressionar.
- O Crackbones também lutou com um dragão, mas não precisou de espada mágica nenhuma. Deu-lhe apenas um nó no pescoço, de modo que cada vez que o bicho soltava fogo, assava o próprio rabo.
- E o que fez Crackbones quando Aegon e as irmãs chegaram? - perguntou-lhe Brienne.
- Estava morto. A senhora devia saber disso - Crabb lançou-lhe um olhar de esguelha. - Aegon mandou a irmã à Garra Rachada, a tal Visenya. Os senhores tinham ouvido falar do fim de Harren. Como não eram tolos, puseram as espadas aos pés dela. A rainha tomou-os como seus homens e disse que não deviam lealdade a Lagoa da Donzela, Ilha dos Caranguejos ou Valdocaso. Isso não impediu aqueles malditos Celtigar de mandar homens à costa oriental para coleta de impostos. Se manda o suficiente, alguns regressam... fora isso, dobramo-nos só aos nossos senhores, e ao rei. Ao rei verdadeiro, não a Robert e gente de sua laia - cuspiu. - Havia Crabbs, Brunes e Boggses com o Príncipe Rhaegar no Tridente, e na Guarda Real também. Um Hardy, um Cave, um Pyne, e três Crabb, Clement, Rupert e Clarence, o Baixo. Tinha um metro e oitenta, o tipo, mas era baixo comparado com o verdadeiro Sor Clarence. Somos todos bons homens dos dragões aqui no caminho da Garra Rachada.
O movimento continuou diminuindo à medida que avançavam para norte e para leste, até que por fim deixaram de encontrar estalagens. Aquela altura, a estrada costeira era mais ervas daninhas do que sulcos. Naquela noite abrigaram-se em uma aldeia de pescadores. Brienne pagou um punhado de cobres aos aldeões para os deixarem pernoitar num celeiro cheio de feno. Ficou com o sobrado para si e para Podrik, e puxou a escada depois de subirem.
- Se me deixar aqui embaixo sozinho, posso perfeitamente roubar os cavalos - Crabb gritou. - E melhor que os faça subir a escada também, senhora - quando ela o ignorou, ele continuou: - Esta noite vai chover. Uma chuva fria e forte. Você e o Pods vão dormir aconchegadinhos e quentes, e o pobre velho Dick vai ficar aqui embaixo, tremendo sozinho - balançou a cabeça, resmungando, enquanto transformava uma pilha de feno numa cama. - Nunca conheci donzela tão desconfiada como você.
Brienne enrolou-se debaixo do manto, com Podrick bocejando a seu lado. Não fui sempre cautelosa, podia lhe ter gritado. Quando era menina, acreditava que todos os homens eram tão nobres como meu pai. Até os homens que lhe diziam como era uma menina bonita, como era alta, esperta e inteligente, como era graciosa quando dançava. Foi Septã Roelle quem tirou as lascas de cima de seus olhos.
"Eles só dizem essas coisas para conquistar o favor do senhor seu pai” dissera a mulher. "Encontrará a verdade no espelho, não na língua dos homens.” Foi uma lição dura, que a fez chorar, mas servira-lhe bem em Harrenhal, quando Sor Hyle e os amigos jogaram seu jogo. Uma donzela deve ser desconfiada neste mundo, senão não será donzela por muito tempo, ela pensava quando a chuva começou a cair.
No corpo a corpo, em Pontamarga, procurara seus pretendentes e os espancara um por um, Farrow, Ambrose e Bushy, Mark Mullendore, Raymond Nayland e Will, o Cegonha. Atropelara Harry Sawyer e quebrara o elmo de Robin Potter, deixando-lhe uma feia cicatriz. E quando o último deles caiu, a Mãe lhe entregou Connington. Daquela vez, Sor Ronnet empunhava uma espada, em vez de uma rosa. Cada golpe que lhe desferira era mais doce do que um beijo.
Loras Tyrell fora o último a enfrentar sua fúria naquele dia. Nunca a cortejara, quase nem sequer a olhara, mas naquele dia trazia três rosas douradas no escudo, e Brienne odiava rosas. Vê-las dera-lhe uma força furiosa. Adormeceu sonhando com a luta que tinham tido, e com Sor Jaime prendendo-lhe um manto arco-íris em volta dos ombros.
Ainda chovia na manhã seguinte. Ao quebrarem o jejum, Lesto Dick sugeriu que esperassem até a chuva parar.
- E isso será quando? Amanhã? Dentro de uma quinzena? Quando o verão voltar? Não. Temos mantos, e léguas a percorrer.
Choveu durante todo aquele dia. A estreita trilha que seguiam rapidamente se transformou em lama por baixo deles. As árvores que viam estavam despidas, e a chuva contínua transformara as folhas caídas em um tapete encharcado e marrom. Apesar do seu forro de pele de esquilo, o manto de Dick deixava passar água, e Brienne via-o tremer. Sentiu um pouco de pena do homem. Ele não tem comido bem, isto é evidente. Perguntou a si mesma se haveria realmente uma enseada de contrabandistas, ou um castelo arruinado chamado Murmúrios. Homens famintos fazem coisas desesperadas. Tudo aquilo podia ser um estratagema para enganá-la. A suspeita amargou-lhe o estômago.
Durante algum tempo pareceu que o gotejar constante da chuva era o único som que havia no mundo. Lesto Dick continuou a avançar, sem querer saber de nada. Observou-o de perto, notando o modo como dobrava as costas, como se se enrolar sobre si mesmo na sela pudesse mantê-lo seco. Daquela vez não havia uma aldeia à mão quando a escuridão caiu sobre eles. Nem havia árvores que lhes fornecessem abrigo. Foram forçados a acampar por entre alguns rochedos, cinquenta metros acima da linha das marés. Os rochedos, pelo menos, manteriam o vento afastado.
- É melhor fazermos turnos de vigia esta noite, senhora - disse-lhe Crabb, no momento em que Brienne lutava para acender uma fogueira de madeira trazida pelas marés. - Num lugar como este pode haver chapinheiros.
- Chapinheiros? - Brienne lançou-lhe um olhar desconfiado.
- Monstros - Lesto Dick explicou com satisfação. - Parecem homens até se chegar perto, mas a cabeça é grande demais, e têm escamas onde um homem tem pelos. São brancos como a barriga de um peixe, com pele entre os dedos. Estão sempre úmidos e cheiram a peixe, mas atrás daqueles lábios tristes há filas de dentes verdes afiados como agulhas. Há quem diga que os Primeiros Homens os mataram a todos, mas não acredite nisso. Chegam de noite e roubam criancinhas malcriadas, andando por aí com aqueles pés de pato, fazendo um ruidinho de chapinhar. Ficam com as moças para acasalar, mas comem os rapazes, roendo-os com aqueles dentes verdes e afiados - mostrou um sorriso a Podrick. - Você eles comeriam, garoto. Comeriam você cru.
- Se tentarem, eu mato eles - Podrick tocou a espada.
- Tente isso. Tente. Os chapinheiros não são fáceis de matar - piscou um olho a Brienne. - É uma mocinha má, senhora?
- Não - só uma tola. A madeira estava muito úmida para acender, por mais faíscas que Brienne fizesse saltar da pederneira e do aço. Os gravetos fumegaram um pouco, mas foi tudo. Descontente, instalou-se com as costas apoiadas num rochedo, cobriu-se com o manto e resignou-se a uma noite fria e úmida. Sonhando com uma refeição quente, roeu uma porção de carne de vaca dura e salgada, enquanto Lesto Dick falava sobre quando Sor Clarence Crabb lutara com o rei dos chapinheiros. Ele conta histórias animadas, teve de admitir, mas Mark Mullendore também era divertido com seu macaquinho.
O tempo estava úmido demais para se ver o sol se pôr, e muito cinzento para se ver a lua nascer. A noite foi negra e desprovida de estrelas. Crabb esgotou as histórias e foi dormir. Podrick logo também estava ressonando, Brienne ficou sentada com as costas apoiadas ao rochedo escutando as ondas. Está perto do mar, Sansa? Perguntou a si mesma. Está à espera nos Murmúrios por um navio que nunca chegará? Quem está com você? Passagem para três, ele disse. Terá o Duende se juntado a você e a Sor Dontos, ou será que encontrou sua irmãzinha?
O dia fora longo, e Brienne estava cansada. Descobriu que até ficar sentada contra o rochedo, com a chuva tamborilando levemente ao redor, fazia que suas pálpebras começassem a pesar. Dormitou por duas vezes. Da segunda, acordou de repente, com o coração aos saltos, convencida de que alguém estava em pé acima dela. Sentia os membros rígidos, e o manto se enrolava em seus tornozelos. Libertou-se dele com um pontapé e se levantou. Lesto Dick estava aninhado de encontro a um rochedo, meio enterrado em areia molhada e pesada, dormindo. Um sonho. Foi um sonho.
Talvez tivesse cometido um erro ao abandonar Sor Creighton e Sor Illifer. Tinham lhe parecido honestos. Gostaria que Jaime estivesse comigo, pensou... mas ele era um cavaleiro da Guarda Real, o lugar que lhe competia era com o rei. Além disso, era Renly quem desejava. Jurei que o protegeria e falhei. Depois jurei que o vingaria e também falhei em fazê-lo. Em vez disso, fugi com a Senhora Catelyn, e também falhei com ela. O vento mudara de direção, e a chuva escorria por seu rosto.
No dia seguinte, a estrada reduziu-se a um fio pedregoso, e por fim a uma mera sugestão. Perto do meio-dia, chegou a um fim abrupto no sopé de uma escarpa esculpida pelo vento. Por cima, um pequeno castelo franzia a testa por sobre as ondas, com três torres tortas delineadas contra um céu de chumbo.
- Aquilo são os Murmúrios? - Podrick quis saber.
- Aquilo lhe parece a porcaria de uma ruína? - Crabb cuspiu. - Aquilo é o Antro Terrível, onde o velho Lorde Brune tem sua sede. Mas a estrada acaba aqui. Para nós, daqui para a frente são pinheiros.
Brienne estudou a escarpa.
- Como chegamos lá em cima?
- É fácil - Lesto Dick deu a volta com o cavalo. - Fique perto do Dick. Os chapinheiros são bichos que apanham os que ficam para trás.
O caminho ascendente revelou-se uma íngreme trilha pedregosa escondida no interior de uma fenda na rocha. A maior parte era natural, mas aqui e ali tinham sido esculpidos degraus para facilitar a subida. Paredes abruptas de rocha, carcomida por séculos de vento e respingos das ondas, apertavam-nos de ambos os lados. Em alguns pontos tinham tomado formas fantásticas. Lesto Dick indicou algumas enquanto subiam.
- Ali está a cabeça de um ogro, veem? -disse, e Brienne sorriu quando a viu. - E aquilo ali é um dragão de pedra. A outra asa partiu-se quando meu pai era moço. Aquilo ali por cima são as tetas caídas como as de uma velha bruxa - e lançou um relance ao peito de Brienne.
- Sor? Senhora? - disse Podrick. - Há um cavaleiro.
- Onde? - nenhuma das rochas lhe sugeria um cavaleiro.
- Na estrada. Não é cavaleiro de pedra. Um verdadeiro. Está nos seguindo. Lá embaixo - apontou.
Brienne torceu-se na sela. Tinham subido até uma altura suficiente para ver léguas ao longo da costa. O cavalo aproximava-se pela mesma estrada que tinham percorrido, duas ou três milhas atrás deles. Outra vez? Lançou um relance desconfiado a Lesto Dick.
- Não me olhe torto - ele resmungou. - Ele não tem nada a ver com o velho Lesto Dick, seja quem for. Algum homem do Brune, o mais certo, voltando das guerras. Ou um daqueles cantores que andam de um lado para outro - virou a cabeça e cuspiu. - Não é chapinheiro nenhum, isto é certo. Esses não montam a cavalo.
- Não - Brienne assentiu. Naquilo, pelo menos, podiam concordar.
Os últimos trinta metros da subida revelaram-se os mais íngremes e traiçoeiros. Pedrinhas soltas rolavam por baixo dos cascos dos cavalos e caíam aos saltos pelo caminho pedregoso que tinham deixado para trás. Quando emergiram da fenda na rocha, encontraram-se junto às muralhas do castelo. Num parapeito, por cima deles, um rosto os espreitou, após o que desapareceu. Brienne achou que podia ter sido uma mulher, e disse isso mesmo a Lesto Dick.
Ele concordou.
- Brune é velho demais para subir aos adarves, e os filhos e netos foram para as guerras. Não ficou ninguém aqui a não ser mulheres, e um bebê ranhoso ou dois.
Estava nos lábios de Brienne perguntar ao guia de qual dos reis fora a causa que Lorde Brune abraçara, mas já não tinha importância. Os filhos de Brune tinham partido; alguns podiam nem regressar. Não conseguiremos hospitalidade aqui esta noite. Não era provável que um castelo cheio de velhos, mulheres e crianças abrisse as portas a estranhos armados.
- Fala de Lorde Brune como se o conhecesse - disse a Lesto Dick.
- Pode ser que tenha conhecido, há tempos.
Brienne lançou um relance ao peito do gibão do homem. Fios soltos e um bocado esfarrapado de pano mais escuro indicavam o lugar de onde um símbolo qualquer fora arrancado. Seu guia era um desertor, não duvidava. Poderia o cavaleiro que os seguia ser um de seus irmãos de armas?
- Devíamos continuar - exortou o homem - antes que Brune comece a perguntar a si mesmo por que diabo estamos aqui à sombra de suas muralhas. Até uma mulher pode esticar a porcaria da corda de uma besta - Dick indicou com um gesto os montes de pedra calcária que se erguiam atrás do castelo, com suas vertentes arborizadas. - Daqui para a frente não há mais estradas, só ribeiros e trilhas de caça, mas a senhora não precisa ter medo. Lesto Dick conhece esta região.
Era isto o que Brienne temia. O vento soprava em rajadas ao longo do topo da escarpa, mas a única coisa que conseguia cheirar era uma armadilha.
- E aquele cavaleiro? - a menos que seu cavalo fosse capaz de caminhar sobre as ondas, em breve subiria a escarpa.
- Que é que tem ele? Se for um palerma qualquer de Lagoa da Donzela, pode nem sequer encontrar a porcaria do caminho. E se encontrar, o despistamos nos bosques. Lá não vai ter estrada para seguir.
Só nosso rastro. Brienne perguntou a si mesma se não seria melhor enfrentar o cavaleiro ali, de espada na mão. Parecerei uma completa idiota se for um cantor ambulante ou um dos filhos de Lorde Brune. Supunha que Crabb tivesse razão. Se ainda estiver atrás de nós amanhã, posso então lidar com ele.
- Como quiser -disse, virando a égua na direção das árvores.
O castelo de Lorde Brune minguou às suas costas e logo ficou fora de vista. Sentinelas e pinheiros marciais erguiam-se por toda volta, atirando altas lanças vestidas de verde para o céu. O chão da floresta era um tapete de agulhas com a espessura de uma muralha de castelo juncado de pinhas. Os cascos dos cavalos pareciam não fazer um ruído. Choveu um pouco, parou durante algum tempo, e então recomeçou a chover, mas entre os pinheiros quase não sentiram uma gota.
O avanço era muito mais lento nos bosques. Brienne incitava a égua a avançar através da penumbra verde, ziguezagueando de um lado para o outro por entre as árvores. Percebeu que seria muito fácil se perder ali. Todos os lados para onde olhava pareciam iguais. O próprio ar parecia cinzento, verde e imóvel. Galhos de pinheiro raspavam em seus braços e arranhavam ruidosamente o escudo recém-pintado. A estranha quietude mexia-lhe mais com os nervos a cada hora que passava.
Também a incomodava Lesto Dick. Mais tarde, nesse mesmo dia, quando o ocaso se aproximava, tentou cantar.
- Havia um urso, um urso, um urso! Preto e castanho e coberto de pelo - cantou, com uma voz tão áspera quanto um par de calções de lã. Os pinheiros beberam sua canção, assim como bebiam o vento e a chuva. Pouco depois, parou.
- Isto aqui é ruim - disse Podrick. - Este é um mau lugar.
Brienne sentia o mesmo, mas não serviria de nada admiti-lo.
- Um pinhal é um lugar sombrio, mas no fim das contas é só uma floresta. Não há nada aqui que tenhamos que temer.
- E os chapinheiros? E as cabeças?
- Aí está um moço esperto - Lesto Dick retrucou, rindo.
Brienne lançou-lhe um olhar aborrecido.
- Os chapinheiros não existem - disse a Podrick - e as cabeças também não.
Os montes subiram, os montes desceram. Brienne deu por si rezando para que Lesto Dick fosse honesto e soubesse para onde os estava levando. Sozinha, nem sequer tinha certeza de que conseguiria encontrar o mar. De dia ou de noite, o céu mostrava-se de um cinza sólido e encoberto, sem sol nem estrelas que a ajudassem a se orientar.
Acamparam cedo naquela noite, depois de descerem uma colina e de se acharem na beira de um reluzente pântano verde. À luz cinza-esverdeada, o terreno que se estendia em frente parecia bastante sólido, mas quando avançaram, engolira-lhes os cavalos até o garrote. Tiveram de dar meia-volta e lutar para regressar para terreno mais sólido.
- Não importa - garantiu-lhes Crabb. - Voltamos a subir a colina e descemos por outro lado.
O dia seguinte foi igual. Cavalgaram por entre pinheiros e pântanos, sob céus escuros e chuva intermitente, passando por poços e grutas e pelas ruínas de antigas fortalezas cujas pedras estavam cobertas de musgo. Cada pilha de pedras tinha uma história, e Lesto Dick contou-as todas. Caso se acreditasse no que ele contava, os homens da Ponta da Garra Rachada tinham lavado seus pinheiros com sangue. A paciência de Brienne começou rapidamente a se esgotar.
- Quanto falta? - quis finalmente saber. - A essa altura já devemos ter visto todas as árvores de Ponta da Garra Rachada.
- Nem as sombras - disse Crabb. - Já estamos perto. Olhe, o bosque está ficando menos denso. Estamos perto do mar estreito.
É provável que esse bobo que ele me prometeu seja meu próprio reflexo numa poça, pensou Brienne, mas parecia inútil voltar depois de vir até tão longe. Contudo, estava cansada, não podia negar. Sentia as coxas duras como ferro, por causa da sela, e nos últimos tempos dormia só quatro horas por noite, enquanto Podrick a vigiava. Se Lesto Dick pretendesse tentar assassiná-los, estava convencida de que o faria ali, em terreno que conhecia bem. Podia estar levando-os para algum covil de ladrões, onde tivesse familiares tão traiçoeiros quanto ele. Ou talvez estivesse apenas fazendo que andassem em círculos, à espera de que o outro cavaleiro os apanhasse. Não tinham visto nenhum sinal do homem desde que deixaram para trás o castelo de Lorde Brune, mas isso não significava que tivesse desistido da perseguição.
Talvez tenha que matá-lo, disse a si mesma uma noite, enquanto andava de um lado para outro no acampamento. A ideia a deixou indisposta. Seu velho mestre de armas sempre questionara se ela seria suficientemente dura para a batalha.
“Tem nos braços a força de um homem” dissera-lhe Sor Goodwin, mais de uma vez, “mas seu coração é mole como o de qualquer donzela. Uma coisa é treinar no pátio, com uma espada embotada na mão, outra é enfiar trinta centímetros de aço afiado nas tripas de um homem e ver a luz apagar-se de seus olhos” Para endurecê-la, Sor Goodwin mandou-a ao carniceiro do pai, a fim de abater cordeiros e leitões. Os leitões guincharam e os cordeiros gritaram como crianças assustadas. Quando acabou, Brienne estava cega com as lágrimas e tinha a roupa tão ensanguentada que a deu à aia para que a queimasse. Mas Sor Goodwin ainda ficara com dúvidas. "Um leitão é um leitão. Com um homem é diferente. Quando eu era um escudeiro tão novo quanto você, tive um amigo que era forte, rápido e ágil, um campeão no pátio. Todos sabíamos que um dia seria um cavaleiro magnífico. Então, a guerra chegou aos Degraus. Vi meu amigo pôr seu adversário de joelhos e tirar-lhe o machado da mão, mas no momento em que pôde acabar com ele, hesitou durante meio segundo. Na batalha, meio segundo é uma vida inteira. O homem puxou a adaga e descobriu uma fenda na armadura do meu amigo. Sua força, sua rapidez, seu valor, toda sua perícia duramente conquistada... valeu menos do que um peido de saltimbanco, porque vacilou perante a matança. Lembre-se disso, garota,”
Eu me lembrarei, prometeu à sombra do homem, ali no pinhal. Sentou-se numa pedra, desembainhou a espada e pôs-se a amolar seu gume. Eu me lembrarei, e rezo para não vacilar.
O dia seguinte amanheceu ventoso, frio e nublado. Não chegaram a ver o sol nascer, mas, quando o negrume se transformou em cinza, Brienne soube que estava na hora de voltar a selar o cavalo. Com Lesto Dick indicando o caminho, voltaram a penetrar nos pinheiros. Brienne o seguiu de perto, com Podrick fechando a retaguarda em seu cavalo malhado.
O castelo caiu sobre eles sem avisar. Num momento estavam nas profundezas da floresta, sem nada à vista ao longo de léguas e léguas a não ser pinheiros. Então, deram a volta a um pedregulho, e uma brecha surgiu à frente. Uma milha mais adiante, a floresta terminou abruptamente. Em frente havia céu e mar... e um castelo antigo e arruinado, abandonado e coberto de vegetação na beira de uma falésia.
- Os Murmúrios - Lesto Dick anunciou. - Escutem. Dá para ouvir as cabeças.
A boca de Podrick escancarou-se.
- Estou ouvindo.
Brienne também as ouvia. Um murmúrio tênue e suave que parecia vir tanto do chão como do castelo. O som foi ficando mais forte à medida que se aproximavam da falésia. Era o mar, ela percebeu de repente. As ondas tinham roído buracos na falésia, lá embaixo, e ressoavam por grutas e túneis por baixo da terra.
- Não há cabeça nenhuma - disse. - O que está ouvindo murmurar são as ondas.
- As ondas não murmuram. São cabeças.
O castelo fora feito de velhas pedras soltas e não tinha duas que fossem iguais. Musgo crescia, denso, em fendas entre as rochas, e havia árvores crescendo nas fundações. A maior parte dos castelos antigos possuía um bosque sagrado. Pelo aspecto, Murmúrios tinha um pouco mais. Brienne levou a égua até a borda da falésia, onde a muralha exterior ruíra. Montículos de hera venenosa vermelha cresciam sobre a pilha de pedras partidas. Amarrou o cavalo a uma árvore e aproximou-se o mais que se podia atrever do precipício. Quinze metros mais abaixo, as ondas turbilhonavam por dentro e por cima dos restos de uma torre desfeita. Por trás, vislumbrou a embocadura de uma grande caverna.
- Isto é a antiga torre sinaleira - disse Lesto Dick quando se aproximou de Brienne por trás. - Caiu quando eu tinha metade da idade do Pods aqui. Havia degraus até a enseada, mas quando a ribanceira ruiu, caíram também. Os contrabandistas deixaram de vir aqui depois disso. Houve época em que eles podiam entrar com os botes na gruta, mas já não podem. Vê? - pôs-lhe a mão nas costas e apontou com a outra.
A pele de Brienne se arrepiou. Um empurrão, e vou fazer companhia à torre lá em baixo. Deu um passo para trás.
- Tire as mãos de cima de mim.
Crabb fez uma careta.
- Eu estava só...
- Não me interessa o que você estava só. Onde fica o portão?
- Lá do outro lado - o homem hesitou. - Esse seu bobo não é homem de guardar rancor, é? - perguntou, nervoso. - Quer dizer, na noite passada pus-me a pensar se ele está zangado com o velho Lesto Dick, por causa daquele mapa que lhe vendi e porque não lhe disse que os contrabandistas já não desembarcam aqui.
- Com o ouro que vai receber, pode devolver a ele o que quer que tenha pago por sua ajuda - Brienne não conseguia imaginar Dontos Hollard constituindo uma ameaça. - Isto é, se ele estiver mesmo aqui.
Fizeram o circuito das muralhas. O castelo tinha sido triangular, com torres quadradas em cada canto. Os portões estavam muito apodrecidos. Quando Brienne puxou um deles, a madeira rachou-se e se desfez em longas lascas úmidas, e metade do portão caiu sobre ela. Viu mais sombras verdes lá dentro. A floresta abrira brechas nas muralhas e engolira torre e parede exterior. Mas havia uma porta levadiça atrás do portão, com dentes profundamente afundados no solo macio e lamacento. O ferro estava vermelho de ferrugem, mas aguentou quando Brienne o sacudiu.
- Há muito tempo que ninguém usa este portão.
- Podia escalar a muralha - ofereceu-se Podrick. - Pela falésia. Onde a muralha caiu.
- É muito perigoso. Aquelas pedras pareceram-me soltas, e aquela hera vermelha é venenosa. Deve haver uma porta secreta.
Encontraram-na no lado norte do castelo, meio escondida atrás de uma amoreira silvestre. As amoras tinham sido todas colhidas, e metade do arbusto fora cortado para abrir caminho até a porta. A visão dos galhos quebrados encheu Brienne de inquietação.
- Alguém passou por ali, e não faz muito tempo.
- O seu bobo e as moças -disse Crabb. - Eu lhe disse.
Sansa? Brienne não conseguia acreditar. Até um bêbado encharcado em vinho como Dontos Hollard teria bom-senso suficiente para não trazê-la para este lugar desolado. Algo nas ruínas a enchia de desconforto. Não encontraria ali a garota Stark... mas precisava dar uma olhadela. Alguém esteve aqui, pensou. Alguém que precisava ficar escondido.
- Vou entrar - disse. - Crabb, você vem comigo. Podrick, quero que vigie os cavalos.
- Quero ir também. Sou um escudeiro. Posso lutar.
- É por isso que quero que fique aqui. Pode haver alguns fora da lei nesses bosques. Não nos atrevemos a deixar os cavalos desprotegidos.
Podrick remexeu numa pedra com a bota.
- Como quiser.
Brienne abriu caminho através das amoras silvestres e puxou um anel ferrugento de ferro. A porta secreta resistiu durante um momento, mas depois se abriu de repente, com as dobradiças gritando em protesto. O som fez que os pelos na parte de trás de seu pescoço se eriçassem. Desembainhou a espada. Apesar de vestida de cota de malha e couro fervido, sentiu-se nua.
- Vá em frente, senhora - incentivou-a Lesto Dick, atrás dela. - Está esperando o quê? Velho Crabb está morto há mil anos.
O que estava esperando? Brienne disse a si mesma que estava sendo tola. O som era só o mar, ecoando constantemente pelas cavernas por baixo do castelo, subindo e descendo a cada onda. Realmente soava como murmúrios, porém, e por um momento quase conseguiu ver as cabeças, arrumadas em suas prateleiras resmungando umas com as outras.
- Devia ter usado a espada - uma delas dizia. - Devia ter usado a espada mágica.
- Podrick - disse Brienne. - Há uma espada e uma bainha embrulhadas em meu rolo de dormir. Traga-as para mim.
- Sim, sor. Senhora. Eu levarei - o garoto saiu correndo.
- Uma espada? - Lesto Dick coçou atrás da orelha. - Tem uma espada na mão. Para que precisa de outra?
- Esta é para você - Brienne ofereceu-lhe o cabo.
- Sério? - Crabb estendeu, hesitante, a mão, como se a lâmina pudesse mordê-lo. - A donzela desconfiada está dando uma espada ao velho Dick?
- Espero que saiba como se usa.
- Sou um Crabb - arrancou-lhe a espada da mão. - Tenho o mesmo sangue do velho Sor Clarence - golpeou o ar e sorriu para Brienne. - Há quem diga que é a espada que faz o senhor.
Quando Podrick Payne regressou, trazia a Cumpridora de Promessas com tanto cuidado como se fosse uma criança. Lesto Dick soltou um assobio ao ver a ornamentada bainha com sua fileira de cabeças de leão, mas silenciou-se quando ela desembainhou a arma e experimentou um golpe. Até o som que faz é mais aguçado do que o de uma espada comum.
- Comigo - ela disse a Crabb. Esgueirou-se, de lado, pela porta secreta, abaixando a cabeça para passar sob o arco da porta.
O pátio exterior abriu-se na sua frente, coberto de vegetação. A esquerda ficava o portão principal e a casca arruinada daquilo que poderia ter sido um estábulo. Árvores novas espreitavam de metade das baias e cresciam através do colmo seco e castanho do telhado. A direita, viu degraus de madeira apodrecidos que desciam para a escuridão de uma masmorra ou um armazém subterrâneo. Onde estivera a torre de menagem, encontrava-se uma pilha de pedras derrubadas, cobertas de musgo verde e púrpura. O pátio era só ervas daninhas e agulhas de pinheiro. Havia pinheiros marciais por todo lado, alinhados em solenes fileiras. Entre eles erguia-se um estranho branco, um represeiro jovem e esguio com um tronco tão pálido quanto uma donzela enclausurada. Folhas vermelhas escuras nasciam em seus longos ramos. Mais adiante, encontrava-se o vazio do céu e do mar, no local onde a muralha ruíra...
... e os restos de uma fogueira.
Os murmúrios mordiscavam-lhe os ouvidos, insistentes. Brienne ajoelhou-se junto à fogueira. Pegou num pedaço de madeira enegrecido, cheirou-o, remexeu as cinzas. Alguém tentou se manter quente ontem à noite. Ou então estavam enviando um sinal a um navio de passagem.
- Oláááááááá - gritou Lesto Dick. - Tem alguém aqui?
- Cale-se - Brienne ordenou.
- Pode haver alguém escondido. Querendo dar uma olhadela em nós antes de se mostrar - dirigiu-se até o lugar onde os degraus desciam para o subsolo e espreitou a escuridão. - Olááááááááá - voltou a gritar. - Tem alguém aí embaixo?
Brienne viu uma árvore jovem balançar. Um homem esgueirou-se do interior dos arbustos, de tal modo coberto de terra que parecia ter nascido do chão. Trazia uma espada quebrada na mão, mas foi seu rosto que a fez hesitar, os olhos pequenos e as narinas largas e achatadas.
Conhecia aquele nariz. Conhecia aqueles olhos. Os amigos o chamavam de Pyg.
Tudo pareceu acontecer num segundo. Outro homem apareceu sobre a borda do poço, sem fazer mais ruído do que uma serpente faria ao deslizar sobre uma pilha de folhas úmidas. Usava um meio-elmo de ferro enrolado em seda vermelha manchada e tinha uma lança de arremesso curta e grossa na mão. Brienne também o conhecia. Atrás de si ouviu um restolhar no momento em que uma cabeça espreitou através das folhas vermelhas. Crabb estava por baixo do represeiro. Olhou para cima e viu o rosto.
- Está aqui - gritou para Brienne. - É o seu bobo.
- Dick - ela chamou com urgência - venha aqui.
Shagwell deixou-se cair do represeiro zurrando uma gargalhada. Estava vestido de retalhos, mas de tal modo desbotados e manchados que exibiam mais marrom do que cinza ou cor-de-rosa. No lugar do malho de um bobo, trazia um mangual triplo, com três bolas eriçadas de pregos acorrentadas a um cabo de madeira. Brandiu-o com força e por baixo, e um dos joelhos de Crabb explodiu numa nuvem de sangue e osso.
- Isto é engraçado - vangloriou-se Shagwell quando Dick caiu. A espada que Brienne lhe dera voou de sua mão e desapareceu nas ervas daninhas. Ficou contorcendo-se no chão, gritando, agarrado aos restos do joelho. - Oh, olhem - disse Shagwell - é o Dick Contrabandista, o tipo que nos fez o mapa. Veio até tão longe para nos devolver o ouro?
- Por favor - Dick choramingou - por favor, não, minha perna...
- Dói? Posso fazer parar.
- Deixe-o em paz - Brienne disse.
- NÃO! - Dick guinchou, erguendo mãos ensanguentadas para proteger a cabeça. Shagwell voltou a fazer rodopiar a bola de espigões em volta da cabeça e a atirou contra o meio da cara de Crabb. Ouviu-se um repugnante ruído de esmagamento. No silêncio que se seguiu, Brienne conseguiu ouvir o som do seu coração.
- Shags mau - disse o homem que tinha saído do poço. Quando viu o rosto de Brienne, soltou uma gargalhada. - Você outra vez, mulher? O que foi, veio nos caçar? Ou estava com saudades de nossas caras amigáveis?
Shagwell dançou de um pé para o outro e fez girar seu malho.
- Foi atrás de mim que ela veio. Sonha comigo todas as noites quando enfia os dedos na racha. Ela me quer, rapazes, a grande cavalgadura tem saudades do alegre Shags! Vou fodê-la cu acima e enchê-la de semente de retalhos, até parir um euzinho.
- Vai ter que usar um buraco diferente para isso, Shags - disse Timeon, com seu sotaque arrastado de Dorne.
- Então, o melhor é usar os buracos todos. Só para ter certeza - moveu-se para sua direita enquanto Pyg a cercava pela esquerda, forçando-a recuar na direção da beirada irregular da falésia. Passagem para três, recordou Brienne.
- Vocês são apenas três.
Timeon encolheu os ombros.
- Fomos todos cada um para o seu lado, depois de deixarmos Harrenhal. Urswyck e seu bando foram para o sul, na direção de Vilavelha. Rorge achou que podia escapulir-se de Salinas. Eu e os meus rapazes dirigimo-nos a Lagoa da Donzela, mas não conseguimos nos aproximar de um navio - o dornês sopesou a lança. - Acabou com o Vargo com aquela dentada, sabia? A orelha ficou preta e começou a sair pus. Rorge e Urswyck queriam ir embora, mas o Bode disse que tínhamos de defender seu castelo. Senhor de Harrenhal, diz ele que é, que ninguém o roubaria dele. Disse aquilo todo babão, como falava sempre. Ouvimos dizer que a Montanha o matou um bocadinho de cada vez. Um dia uma mão, no seguinte um pé, cortados com toda a limpeza. Ligavam os cotos para que o Hoat não morresse. Estava guardando o pau para o fim, mas uma ave qualquer chamou-o a Porto Real, de modo que acabou com ele e foi-se embora.
- Não estou aqui por vocês. Estou à procura d... - quase disse da minha irmã. - de um bobo.
- Eu sou um bobo - anunciou Shagwell num tom feliz.
- O bobo errado - Brienne exclamou. - Aquele que quero encontrar está com uma garota bem-nascida, a filha de Lorde Stark, de Winterfell.
- Então é o Cão de Caça que procura - disse Timeon. - Acontece que ele também não está aqui. Só nós.
- Sandor Clegane? - Brienne perguntou. - Que quer dizer?
- É ele quem tem a miúda Stark, Segundo ouvi dizer, ela tentava chegar a Correrrio e ele a raptou. Maldito cão.
Correrrio, pensou Brienne. Ela se dirigia a Correrrio. Para junto dos tios.
- Como sabe?
- Ouvi dizer de um dos tipos de Beric. O senhor do relâmpago também anda à procura dela. Mandou seus homens para cima e para baixo ao longo do Tridente para farejar seu rastro. Encontramos três deles depois de Harrenhal e arrancamos a história de um deles antes de morrer.
- Pode ter mentido.
- Pode, mas não mentiu. Mais tarde ouvimos contar como Cão de Caça matou três dos homens do irmão numa estalagem junto ao entroncamento. A garota estava lá com ele. O estalajadeiro jurou antes de Rorge matá-lo, e as putas disseram a mesma coisa. Eram um grupinho bem feio. Não tão feio quanto você, veja bem, mas mesmo assim...
Ele está tentando me distrair, Brienne percebeu, tenta me colocar para dormir com a voz. Pyg aproximava-se devagar. Shagwell deu um salto em sua direção. Afastou-se deles, recuando. Se eu deixar, vão me fazer recuar até cair da falésia.
- Fiquem onde estão - avisou.
- Acho que vou te foder pelo nariz, garota - anunciou Shagwell. - Isso não seria divertido?
- Ele tem um pau muito pequeno - explicou Timeon. - Larga essa espada bonita, e pode ser que a tratemos bem, mulher. Precisamos de ouro para pagar aos contrabandistas, nada mais.
- E se eu lhes der ouro, vão me deixar ir embora?
- Vamos - Timeon sorriu. - Depois de foder com todos nós. Pagaremos você como a uma puta de verdade. Uma moeda de prata por cada foda. Caso contrário, ficamos com o ouro e violamos você do mesmo jeito, e fazemos o que a Montanha fez a Lorde Vargo. O que prefere?
- Isto - Brienne atirou-se contra Pyg,
Ele ergueu sua lâmina quebrada para proteger o rosto, mas enquanto se levantava, Brienne se abaixou. A Cumpridora de Promessas mordeu através de couro, lã, pele e músculo, enfiando-se na coxa do mercenário. Pyg revidou violentamente no momento em que perdia o apoio da perna. Sua espada quebrada raspou na cota de malha de Brienne antes de ele cair de costas. Ela espetou-lhe a espada na garganta, torceu a lâmina com força e puxou-a para fora, rodopiando no exato momento em que a lança de Timeon lhe passou relampejando pelo rosto. Não vacilei, pensou, enquanto o sangue escorria, rubro, por seu rosto. Viu, Sor Goodwin? Quase nem senti o golpe.
- É a sua vez - disse a Timeon, no momento em que o dornês puxava uma segunda lança, mais curta e mais larga do que a primeira. - Atire-a.
- Para que possa se esquivar e me atacar? Ficaria tão morto quanto Pyg. Não. Pegue-a, Shags.
- Pegue você - Shagwell respondeu. - Viu o que ela fez ao Pyg? Está doida com o sangue da lua - o bobo encontrava-se atrás dela, e Timeon à frente. Não importa para onde virasse, um deles estaria às suas costas.
- Pegue-a - Timeon insistiu - e deixo você foder o cadáver.
- Oh, você me adora mesmo - o mangual rodopiava. Escolha um, disse Brienne a si mesma. Escolha um e mate-o depressa. Então, surgiu uma pedra, vinda de lugar nenhum, e atingiu Shagwell na cabeça. Brienne não hesitou. Voou contra Timeon.
Ele era melhor do que Pyg, mas tinha apenas uma curta lança de arremesso, ao passo que ela possuía uma lâmina de aço valiriano. A Cumpridora de Promessas estava viva em suas mãos. Nunca fora tão rápida. A lâmina transformou-se em uma mancha cinzenta. Timeon feriu-a no ombro quando Brienne caiu sobre ele, mas ela cortou-lhe a orelha e metade da bochecha, cortou-lhe a ponta da lança e enfiou-lhe trinta centímetros de aço ondulado na barriga, através dos elos da camisa de cota de malha que ele usava.
Timeon ainda tentava lutar quando ela puxou a espada de dentro do seu corpo, com os ferimentos a escorrer, vermelhos de sangue. Ele atirou a mão ao cinto e puxou um punhal, o que levou Brienne a cortar-lhe a mão. Essa foi por Jaime.
- Pela misericórdia da Mãe - arquejou o dornês, com sangue saindo da boca aos jorros e irrompendo do pulso. - Acabe com isso. Mande-me de volta para Dorne, sua puta de merda.
Foi o que ela fez.
Shagwell estava de joelhos quando se virou, com um ar desnorteado, enquanto tateava em busca do mangual. Quando se pôs em pé, cambaleante, outra pedra o atingiu na orelha. Podrick subira na muralha caída e estava em pé no meio da hera, de testa franzida, com outra pedra na mão.
- Eu lhe disse que podia lutar! - gritou para baixo.
Shagwell tentou se afastar, de quatro.
- Rendo-me - o bobo gritou - rendo-me. Não deve fazer mal ao querido Shagwell, sou engraçado demais para morrer.
- Não é melhor do que os outros. Roubou, violou e assassinou.
- Oh, é verdade, é verdade, não vou negar... mas sou divertido, com todos os meus gracejos e cambalhotas. Faço os homens rir.
- E as mulheres chorar.
- E a culpa disso é minha? As mulheres não têm senso de humor.
Brienne abaixou a Cumpridora de Promessas.
- Cave um a sepultura. Ali, debaixo do represeiro - apontou com a lâmina.
- Não tenho pá.
- Tem duas mãos - uma a mais do que deixou a Jaime.
- Para que o esforço? Deixe-os para os corvos.
- Timeon e Pyg podem alimentar os corvos. Lesto Dick terá uma sepultura. Ele era um Crabb. Este é o lugar dele.
O solo estava mole por causa da chuva, mesmo assim o bobo precisou do resto do dia para cavar um a cova suficientemente profunda. A noite caía quando ele terminou, com as mãos ensanguentadas e cheias de bolhas. Brienne embainhou a Cumpridora de Promessas, pegou Dick Crabb e o levou para o buraco. Era difícil olhar para seu rosto.
- Lamento nunca ter confiado em você. E agora já não sei como fazê-lo.
Quando se ajoelhou para pousar o corpo, pensou: O bobo fará agora sua tentativa, enquanto eu estiver de costas.
Ouviu sua respiração entrecortada meio segundo antes de Podrick gritar um aviso. Shagwell trazia um bocado irregular de rocha na mão. Brienne tinha o punhal enfiado na manga.
Um punhal quase sempre vence uma rocha.
Afastou-lhe o braço e lhe enfiou o aço nas tripas.
- Ria - rosnou-lhe. Em vez disso, ele gemeu. - Ria - repetiu, agarrando-lhe a garganta com um a mão e apunhalando sua barriga com a outra. - Ria! - e continuou dizendo aquilo, uma e outra vez, até ficar com a mão vermelha até o pulso e o fedor da morte do bobo estar prestes a sufocá-la. Mas Shagwell não chegou a rir. Os soluços que Brienne ouvia eram todos seus. Quando percebeu isso, jogou a faca e estremeceu.
Podrick ajudou Brienne a baixar Lesto Dick para sua cova. Quando terminaram, a lua já subia no céu. Brienne sacudiu a terra das mãos e atirou dois dragões para a sepultura.
- Por que fez isso, senhora? Sor? - Pod quis saber.
- Era a recompensa que lhe prometi para que encontrasse o bobo.
Uma gargalhada soou atrás deles. Brienne arrancou a Cumpridora de Promessas da bainha e rodopiou, esperando mais Saltimbancos Sangrentos... mas era apenas Hyle Hunt empoleirado no topo da muralha em ruínas, de pernas cruzadas.
- Se houver bordéis no inferno, o desgraçado há de lhe agradecer - gritou o cavaleiro para baixo. - Caso contrário, isto é desperdício de bom ouro.
- Eu cumpro minhas promessas. O que você faz aqui?
- Lorde Randyll me pediu que os seguisse. Se por algum estranho acaso tropeçassem em Sansa Stark, ele me disse para levá-la de volta para Lagoa da Donzela. Nada tema, ordenou-me que não lhes fizesse mal.
Brienne fungou.
- Como se pudesse.
- O que fará agora, senhora?
- Eu o cobrirei.
- Referia-me à garota. A Senhora Sansa.
Brienne pensou por um momento.
- Ela se dirigia a Correrrio, se o que Timeon contou for verdade. Em algum lugar, ao longo do caminho, foi capturada pelo Cão de Caça. Se o encontrar...
- ... ele a matará.
- Ou então eu o mato - ela disse, teimosamente. - Vai me ajudar a cobrir o pobre Crabb, sor?
- Nenhum verdadeiro cavaleiro poderia dizer não a uma tal beleza - Sor Hyle desceu da muralha. Juntos empurraram a terra para cima de Lesto Dick, enquanto a lua se erguia no céu, e debaixo da terra as cabeças de reis esquecidos murmuravam segredos.

Um comentário:

  1. Brienne é meio sonsa mas é guerreira. gosto mil vezes mais dela do que da Sansa. gosto mais de todo mundo do que da Sansa heuheuheu.

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