sexta-feira, 20 de setembro de 2013

28 - CERSEI



Foi uma lenta subida até o topo da Colina de Visenya. Enquanto os cavalos se esforçavam para subir, a rainha recostou-se numa almofada vermelha macia. De fora vinha a voz de Sor Osmund Kettleblack.
- Abram alas. Limpem a rua. Abram alas para Sua Graça, a rainha.
- Margaery realm ente mantém uma corte animada - Senhora Merryweather dizia. - Temos malabaristas, saltimbancos, poetas, fantoches...
- Cantores? - Cersei sugeriu.
- Mais do que muitos, Vossa Graça. Hamish, o Harpista, toca para ela uma vez por quinzena, e por vezes Alaric de Eysen nos entretém durante uma noite, mas seu favorito é o Bardo Azul.
Cersei recordava-se de ver o Bardo no casamento de Tommen. Jovem e bonito de se olhar. Poderá haver aí alguma coisa?
- Ouvi dizer que também há outros homens. Cavaleiros e cortesãos. Admiradores. Diga-me a verdade, senhora. Acha que Margaery ainda é donzela?
- Ela diz que é, Vossa Graça.
- Realmente diz. E você, diz o quê?
Os olhos negros de Taena cintilaram de malícia.
- Quando se casou com Lorde Renly em Jardim de Cima, ajudei a despi-lo. Sua senhoria era um homem bem-feito e robusto. Vi a prova quando o atiramos para a cama de núpcias onde sua noiva aguardava nua como no dia de seu nome, com um lindo rubor por baixo da colcha. Sor Loras a tinha trazido em pessoa degraus acima. Margaery pode dizer que o casamento nunca foi consumado, que Lorde Renly bebera vinho demais no banquete de casamento, mas garanto-lhe que aquilo que tinha entre as pernas estava tudo, menos cansado, da última vez que o vi.
- Teria por acaso visto a cama nupcial na manhã seguinte? - Cersei quis saber. - Ela sangrou?
- Não foi exibido nenhum lençol, Vossa Graça.
Uma pena. Apesar de tudo, a ausência de um lençol ensanguentado, apenas, pouco queria dizer. Tinha ouvido falar que as camponesas comuns sangravam como porcos em sua noite de núpcias, mas isso era menos verdadeiro no que dizia respeito a donzelas de nascimento elevado como Margaery Tyrell. Dizia-se que era mais provável que a filha de um lorde entregasse a virgindade a um cavalo do que a um marido, e Margaery montava desde que tivera idade para andar.
- Consta-me que a pequena rainha tem muitos admiradores entre os nossos cavaleiros domésticos. Os gêmeos Redwyne, Sor Tallad... Diga-me, quem mais?
Senhora Merryweather encolheu os ombros.
- Sor Lambert, o tolo que esconde um olho bom atrás de uma pala. Bayard Norcross. Courtenay Greenhill. Os irmãos Woodwright, por vezes Portifer e muitas vezes Lucantine. Oh, e o Grande Meistre Pycelle é um visitante frequente.
- Pycelle? Verdade? - teria aquele trêmulo e velho verme abandonado o leão em favor da rosa? Se for verdade, irá se arrepender. - Quem mais?
- O ilhéu do verão com seu manto de penas. Como pude me esquecer dele, com sua pele negra como tinta? Outros vêm cortejar as primas. Elinor está prometida ao rapaz Ambrose, mas adora flertar, e Megga tem um novo pretendente todas as quinzenas. Uma vez beijou um latrineiro na cozinha. Ouvi falar sobre um casamento dela com o irmão da Senhora Bulwer, mas estou certa de que se Megga pudesse escolher, preferiria Mark Mullendore.
Cersei soltou uma gargalhada.
- O cavaleiro das borboletas que perdeu o braço na Água Negra? De que serve metade de um homem?
- Megga acha-o doce. Pediu à Senhora Margaery para ajudá-la a encontrar um macaco para ele.
- Um macaco - a rainha não soube o que dizer a respeito daquilo. Pardais e macacos. É verdade, o reino está enlouquecendo. - E o nosso valente Sor Loras? Com que frequência ele visita a irmã?
- Mais do que qualquer dos outros - quando Taena franzia as sobrancelhas, aparecia uma minúscula ruga entre seus olhos escuros. - Visita-a todas as manhãs e todas as noites, a menos que seus deveres interfiram. O irmão é devotado a ela, partilham tudo com... oh... - por um momento a mulher de Myr pareceu quase chocada. Então, um sorriso se espalhou por seu rosto. - Tive a mais perversa das ideias, Vossa Graça.
- É melhor guardá-la para você. A colina está repleta de pardais, e todos sabemos como os pardais abominam a perversidade.
- Ouvi dizer que também abominam o sabão e a água, Vossa Graça.
- Talvez rezas demais roubem o olfato de um homem. Não me esquecerei de perguntar a Sua Alta Santidade se isto é verdade.
As cortinas tremulavam de um lado para o outro, numa onda de seda carmesim.
- Orton me disse que o Alto Septão não tem nome - Senhora Taena lembrou-se. - Poderá ser verdade? Em Myr todos temos nomes.
- Oh, ele teve nome um dia. Todos tiveram - a rainha fez um gesto de indiferença com a mão - Até septões nascidos de sangue nobre respondem apenas por seus nomes próprios depois de tomarem votos. Quando um deles é elevado a Alto Septão, põe de lado também esse nome. A Fé lhe dirá que ele já não tem necessidade de um nome de homem, porque se transformou na manifestação dos deuses.
- Como distingue os Altos Septões uns dos outros?
- Com dificuldade. É preciso dizer "o gordo” ou “aquele que veio antes do gordo” ou "o velho que morreu durante o sono”. É sempre possível arrancar-lhes o nome próprio, se se quiser, mas eles se ofendem se o usarmos. Faz que se lembrem de que um dia nasceram como homens comuns, e não gostam disso.
- O senhor meu marido me disse que este novo nasceu com sujeira debaixo das unhas.
- Suspeito que sim. Como regra, os Mais Devotos elevam um dos seus, mas houve exceções - o Grande Meistre Pycelle a informara da história, de forma detalhada e entediante. - Durante o reinado do Rei Baelor, o Abençoado, um simples pedreiro foi escolhido como Alto Septão. O homem trabalhava a pedra de forma tão bela que Baelor decidiu que era o Ferreiro renascido em carne mortal. Não sabia ler nem escrever, nem era capaz de se recordar das palavras da mais simples das preces - ainda havia quem afirmasse que a Mão de Baelor mandara envenenar o homem para poupar embaraços ao reino. - Depois de esse Alto Septão morrer, foi elevado um garoto de oito anos, mais uma vez por insistência do Rei Baelor. Sua Graça declarou que o garoto operava milagres, embora nem mesmo suas pequenas mãos curandeiras tivessem salvo Baelor durante seu último jejum.
Senhora Merryweather soltou uma gargalhada.
- Oito anos? Talvez meu filho possa ser Alto Septão. Tem quase sete.
- Ele reza muito? - a rainha perguntou.
- Prefere brincar com espadas.
- Então é um garoto de verdade. É capaz de dizer o nome de todos os sete deuses?
- Acho que sim.
- Terei de levá-lo em consideração - Cersei não duvidava de que havia uma grande quantidade de garotos que honrariam mais a coroa de cristal do que o desgraçado a quem os Mais Devotos haviam decidido outorgá-la. Isso é o que acontece quando se deixa que idiotas e covardes governem a si mesmos. Da próxima vez, escolherei seu chefe. E a próxima vez podia não demorar muito a chegar se o novo Alto Septão continuasse a aborrecê-la. A Mão de Baelor tinha pouco a ensinar a Cersei Lannister em assuntos como esse.
- Saiam do caminho! - Sor Osmund Kettleblack gritava. - Abram alas para a Graça da Rainha!
A liteira começou a parar, o que só podia querer dizer que estavam perto do topo da colina.
- Devia trazer esse seu filho para a corte - disse Cersei à Senhora Merryweather. - Seis anos não é novo demais. Tommen precisa de outros garotos à sua volta. Por que não o seu filho? - Joffrey nunca tivera um amigo íntimo de sua idade, não que se lembrasse. O pobre garoto sempre esteve só. Eu tinha Jaime quando era criança... e Melara, até ela cair no poço. Joff gostara de Cão de Caça, certamente, mas isso não era amizade. Procurava o pai que nunca encontrara em Robert. Um irmãozinho adotivo pode ser justamente o que Tommen precisa para se afastar de Margaery e de suas galinhas. A seu tempo, podiam tornar-se tão próximos quanto Robert e seu amigo de infância, Ned Stark. Um tolo, mas um tolo leal. Tommen precisará de amigos leais que lhe vigiem a retaguarda.
- Vossa Graça é bondosa, mas Russell nunca conheceu outro lar além de Mesalonga. Temo que se sentiria perdido nesta grande cidade.
- A princípio, sim - admitiu a rainha - mas logo superaria isso, assim como eu superei. Quando meu pai mandou me trazerem para a corte, chorei, e Jaime se enfureceu, até que minha tia se sentou comigo no Jardim de Pedra e me disse que não havia ninguém em Porto Real que devesse temer. “É uma leoa” disse, “e cabe a todas as feras menores temerem você” Seu filho também encontrará sua coragem. Certamente preferiria tê-lo por perto, onde pudesse vê-lo todos os dias. É o seu único filho, não?
- Por ora. O senhor meu marido pediu aos deuses para nos abençoar com outro, para o caso de...
- Eu sei - pensou em Joffrey, arranhando o pescoço. Em seus últimos momentos olhara-a num apelo desesperado, e uma súbita recordação parara-lhe o coração; uma gota de sangue rubro silvando na chama de uma vela, uma voz coaxante que falava de coroas e mortalhas, de morte às mãos do valonqar.
Fora da liteira, Sor Osmund gritava qualquer coisa, e alguém gritava-lhe em resposta. A liteira parou com um solavanco.
- Estão todos mortos? - rugiu Kettleblack. - Saiam da porcaria do caminho!
A rainha puxou para trás um canto da cortina e chamou Sor Meryn Trant com um gesto.
- O que está acontecendo?
- São os pardais, Vossa Graça - Sor Meryn usava armadura de escamas brancas por baixo do manto. Seu elmo e seu escudo estavam pendurados na sela. - Acampados na rua. Faremos que se mexam.
- Faça-o, mas com gentileza. Não quero ser apanhada em outro tumulto - Cersei deixou a cortina cair. - Isso é absurdo.
- Sim, Vossa Graça - concordou a Senhora Merryweather. - O Alto Septão devia ter vindo ter com você. E esses deploráveis pardais...
- Ele os alimenta, os acaricia, os abençoa. E no entanto não quer abençoar o rei - sabia que a bênção era um ritual vazio, mas os rituais e as cerimônias tinham poder aos olhos dos ignorantes. O próprio Aegon, o Conquistador, determinara que o início de seu reinado se dera no dia em que o Alto Septão o ungira em Vilavelha. - Esse miserável sacerdote irá obedecer, caso contrário descobrirá quão fraco e humano ainda é.
- Orton diz que o que ele realmente quer é ouro. Que pretende reter a bênção até que a coroa retome os pagamentos.
- A Fé terá seu ouro assim que tenhamos paz - os Septões Torbert e Raynard tinham se mostrado muito compreensivos no que dizia respeito à sua promessa... Ao contrário dos malditos bravosianos, que perseguiram o pobre Lorde Gyles tão impiedosamente que ele caíra de cama, tossindo sangue. Precisávamos daqueles navios. Não podia depender da Árvore para a marinha; os Redwyne eram próximos demais dos Tyrell, Precisava de suas próprias forças no mar.
Os dromones que se erguiam no rio lhe dariam isso. O navio-almirante teria duas vezes mais remos do que o Martelo do Rei Robert, Aurane pedira-lhe autorização para lhe dar como nome Lorde Tywin, e Cersei ficara feliz por conceder. Esperava com antecipação ouvir os homens falar do casco e dos remos do pai. Outro dos navios se chamaria Doce Cersei, e teria uma figura de proa dourada, esculpida à sua semelhança, vestida de cota de malha, com um elmo de leão e uma lança na mão. Valente Joffrey, Senhora Joanna e Leoa a seguiriam para o mar, em conjunto com Rainha Margaery, Rosa Dourada, Lorde Renly, Senhora Olenna e Princesa Myrcella. A rainha cometera o erro de dizer a Tommen que podia batizar os últimos cinco. Ele chegara a escolher Rapaz Lua para um deles. Só quando Lorde Aurane sugerira que os homens talvez não quisessem servir num navio batizado em honra de um bobo é que o garoto concordara relutantemente em honrar a irmã.
- Se esse septão esfarrapado planeja me obrigar a comprar a bênção de Tommen, em breve aprenderá umas coisas - disse a Taena. A rainha não pretendia se submeter a uma matilha de sacerdotes.
A liteira voltou a parar, tão subitamente que Cersei se sobressaltou,
- Oh, isto é de enfurecer - voltou a se debruçar para fora e viu que tinham chegado ao topo da Colina de Visenya. Em frente, erguia-se o Grande Septo de Baelor, com sua magnífica cúpula e sete torres brilhantes, mas entre si e os degraus de mármore estendia-se um soturno mar de humanidade, marrom, esfarrapado e sujo. Pardais, pensou, fungando, embora nenhum deles algum dia tivesse exalado cheiro tão fétido.
Cersei ficou espantada. Qyburn trouxera-lhe relatórios sobre a quantidade de pardais, mas ouvir falar dos números era uma coisa, e outra era vê-los. Centenas e mais centenas estavam acampados na praça, nos jardins. Suas fogueiras enchiam o ar de fumaça e cheiros ruins. Tendas de ráfia e cabanas miseráveis feitas de lama e pedaços de madeira sujavam o imaculado mármore branco. Estavam aninhados até nos degraus, sob as altas portas do Grande Septo.
Sor Osmund regressou a trote para junto dela. Ao seu lado seguia Sor Osfryd, montado num garanhão tão dourado quanto seu manto. Osfryd era o Kettleblack do meio, mais calado do que os irmãos, e mais inclinado a franzir as sobrancelhas do que a sorrir. E também mais cruel, se as histórias forem verdadeiras. Talvez devesse tê-lo enviado para a Muralha.
O Grande Meistre Pycelle quisera um homem mais velho, “mais experiente nos usos da guerra” para comandar os homens de manto dourado, e vários dos outros conselheiros tinham concordado com ele.
“Sor Osfryd tem experiência suficiente” dissera-lhes, mas nem mesmo isso os calara. Latem para mim como uma matilha de cãezinhos irritantes. Já praticamente esgotara sua paciência com Pycelle. O homem até tivera a audácia de levantar objeções quando falara em mandar buscar um mestre de armas em Dome, com o argumento de que isso poderia ofender os Tyrell. “Por que acha que estou fazendo isso?” perguntara a ele desdenhosamente.
- Perdão, Vossa Graça - disse Sor Osmund. - Meu irmão chamou mais homens de manto dourado. Abriremos uma passagem, não tema.
- Não tenho tempo. Prosseguirei a pé.
- Por favor, Vossa Graça - Taena pegou-lhe o braço. - Eles me assustam. São centenas, e tão sujos.
Cersei beijou-lhe o rosto.
- O leão não teme o pardal... mas é bom que se preocupe. Eu sei que gosta bastante de mim, senhora. Sor Osmund, tenha a bondade de me ajudar a descer.
Se soubesse que precisaria caminhar, teria me vestido de acordo. Trazia um vestido branco fendido com pano de ouro, rendado, mas recatado. Tinham se passado vários anos desde a última vez que o envergara, e a rainha achava-o desconfortavelmente apertado na cintura.
- Sor Osmund, Sor Meryn, me acompanhem. Sor Osfryd, assegure-se de que nada de mal aconteça à minha liteira - alguns dos pardais pareciam suficientemente descarnados e de olhos vazios para comer seus cavalos.
Enquanto abria caminho através da multidão esfarrapada, passando por suas fogueiras, carroças e rudes abrigos, a rainha deu por si lembrando-se de outra multidão que um dia se reunira naquela praça. No dia em que se casara com Robert Baratheon, milhares tinham aparecido para aclamá-los. Todas as mulheres usavam suas melhores roupas, e metade dos homens trazia crianças nos ombros. Quando emergira de dentro do septo, de mão dada com o jovem rei, a multidão soltara um rugido tão alto que poderia ter sido ouvido em Lanisporto.
“Eles gostam bastante de você, senhora” murmurara-lhe Robert ao ouvido. “Veja, todos os rostos estão sorrindo.” Durante aquele curto momento, fora feliz no casamento... até lançar por acaso um relance a Jaime. N ão, lembrava-se de ter pensado, não são todos os rostos, senhor.
Agora ninguém sorria. Os olhares que os pardais lhe lançavam eram mortiços, carrancudos, hostis. Abriam caminho, mas com relutância. Se fossem mesmo pardais, um grito os teria feito voar. Uma centena de homens de manto dourado com lanças, espadas e m aças limparia essa gentalha bem depressa. Seria isso que Lorde Tywin teria feito. Ele teria cavalgado por cima deles, em vez de caminhar através da populaça.
Quando viu o que tinham feito a Baelor, o Adorado, a rainha teve motivos para se arrepender do seu coração suave. A grande estátua de mármore, que durante cem anos sorrira serenamente sobre a praça, estava enterrada até a cintura numa pilha de ossos e crânios. Alguns dos crânios mostravam pedaços de carne ainda agarrada. Um corvo encontrava-se pousado em um desses crânios, desfrutando de um banquete seco com uma consistência de couro. Havia moscas por todo lado.
- Que significa isto? - perguntou Cersei à multidão. - Pretendem enterrar o Abençoado Baelor numa montanha de carniça?
Um homem perneta deu um passo em frente, apoiado numa muleta de madeira.
- Vossa Graça, esses são os ossos de homens e mulheres santos, assassinados devido à sua fé, Septões, septãs, irmãos negros, pardos e verdes, irmãs brancas, azuis e cinzentas. Alguns foram enforcados, outros estripados. Septos foram pilhados, donzelas e mães foram violadas por homens ímpios e adoradores de demônios. Até irmãs silenciosas foram molestadas. A Mãe no Céu chora em angústia. Trouxemos seus ossos de todo o reino até aqui para servir de testemunho à agonia da Santa Fé.
Cersei sentia o peso dos olhos sobre si.
- O rei saberá dessas atrocidades - respondeu solenemente. - Tommen partilhará de sua indignação. Isto é obra de Stannis e de sua bruxa vermelha, e dos nortenhos selvagens que adoram árvores e lobos - ergueu a voz: - Bom povo, seus mortos serão vingados!
Alguns aclamaram, mas só alguns.
- Não pedimos vingança por nossos mortos - disse o perneta - apenas proteção para os vivos. Para os septos e lugares santos.
- O Trono de Ferro tem de defender a Fé - resmungou um homem corpulento e grosseiro, com uma estrela de sete pontas pintada na testa. - Um rei que não protege seu povo não é rei nenhum - murmúrios de assentimento ergueram-se entre aqueles que o cercavam. Um homem teve a audácia de agarrar no pulso de Sor Meryn e dizer:
- É tempo de todos os cavaleiros ungidos renunciarem aos seus senhores terrenos e defenderem a nossa Santa Fé. Junte-se a nós, Sor, se ama os Sete.
- Tire as mãos de cima de mim - Sor Meryn bradou, libertando-se com uma sacudidela.
- Estou ouvindo-os - disse Cersei. - Meu filho é jovem, mas ama bastante os Sete. Terão a sua proteção, e a minha.
O homem com a estrela na testa não se mostrou apaziguado,
- O Guerreiro nos defenderá - disse - não esse rei garoto gordo.
Meryn Trant estendeu a mão para a espada, mas Cersei o parou antes que a desembainhasse. Tinha apenas dois cavaleiros no meio de um mar de pardais. Via bastões e foices, clavas e maças, vários machados.
- Não quero sangue derramado neste lugar sagrado, Sor - por que todos os homens são umas crianças? Abata ele e os outros nos desfarão membro a membro. - Somos todos filhos da Mãe. Venha, Sua Alta Santidade nos espera - mas, ao abrir caminho na direção dos degraus do septo, um bando de homens armados saiu e bloqueou as portas. Usavam cota de malha e couro fervido, com pedaços de placa de aço amassados aqui e ali. Alguns traziam lanças, e outros, espadas. Eram mais numerosos os que preferiam machados, e tinham estrelas vermelhas cosidas em seus sobretudos embranquecidos. Dois deles tiveram a insolência de cruzar as lanças e barrar-lhe a passagem.
- É assim que recebem sua rainha? - perguntou-lhes. - Digam-me, onde estão Raynard e Torbert? - não era hábito desses dois perderem uma oportunidade para adulá-la. Torbert fazia sempre alarde de se pôr de joelhos para lhe lavar os pés.
- Não conheço os homens de que fala - disse um dos homens com uma estrela vermelha no sobretudo - mas se pertencerem à Fé, certamente os Sete tiveram necessidade dos seus serviços,
- Septão Raynard e Septão Torbert pertencem aos Mais Devotos - Cersei respondeu - e ficarão furiosos quando souberem que obstruiu minha passagem. Pretende negar-me a entrada no septo sagrado de Baelor?
- Vossa Graça - disse um homem de barba grisalha com um ombro curvado. - É bem-vinda aqui, mas seus homens deverão deixar o cinto da espada. Não são permitidas armas lá dentro, por ordens do Alto Septão.
- Cavaleiros da Guarda Real não põem de lado suas espadas, nem mesmo na presença do rei.
- Na casa do rei, deverá reinar a palavra do rei - respondeu o cavaleiro idoso - mas esta é a casa dos deuses.
A cor subiu-lhe ao rosto. Bastaria dizer uma palavra a Meryn Trant e aquele grisalho de costas arqueadas iria se encontrar com seus deuses mais cedo do que talvez preferisse. Mas aqui não. Agora não.
- Espere por mim - disse secamente à Guarda Real. Sozinha, subiu os degraus. Os Lanceiros descruzaram as lanças. Outros dois homens encostaram seu peso às portas, e elas se afastaram com um grande rangido.
No Salão das Lâmpadas, Cersei foi encontrar uma vintena de septões de joelhos, mas não em oração. Tinham baldes de água e sabão e esfregavam o chão. Suas vestes de tecido grosseiro e sandálias levaram Cersei a tomá-los por pardais, até que um deles ergueu a cabeça. Tinha o rosto vermelho como uma beterraba, e bolhas rebentadas sangravam em suas mãos.
- Vossa Graça.
- Septão Raynard? - a rainha quase não conseguia crer no que via. - O que faz de joelhos?
- Está limpando o chão - o homem que falou era vários centímetros mais baixo do que a rainha e magro como um pau de vassoura. - O trabalho é uma forma de prece, muito do agrado do Ferreiro - o homem se levantou, de escova na mão. -Vossa Graça. Temos estado à sua espera.
A barba do homem era grisalha, castanha e cortada curta, os cabelos atados num nó apertado por trás da cabeça. Embora as vestes que envergava estivessem limpas, estavam também puídas e remendadas. Enrolara as mangas até os cotovelos enquanto esfregava o chão, mas abaixo dos joelhos o pano estava encharcado. O rosto era marcadamente pontiagudo, com olhos encovados castanhos como lama. Seus pés estão nus, Cersei percebeu, consternada. E também eram hediondos, umas coisas duras e coriáceas, tornadas grossas por calos.
- É você Sua Alta Santidade?
- Sim.
Pai, dê-m e forças. A rainha sabia que devia se ajoelhar, mas o chão estava molhado com sabão e água suja, e ela não desejava estragar o vestido. Lançou um relance aos velhos de joelhos.
- Não vejo o meu amigo, o Septão Torbert.
- Septão Torbert foi confinado a uma cela de penitente, a pão e água. É um pecado que um homem seja tão gordo quando metade do reino passa fome.
Cersei já aguentara o suficiente por um dia. Deixou-o ver sua ira.
- É assim que me cumprimenta? Com uma escova na mão, pingando água? Sabe quem eu sou?
- Vossa Graça é a Rainha Regente dos Sete Reinos - o homem disse - mas na Estrela de Sete Pontas está escrito que tal como os homens se dobram perante seus senhores e os senhores perante seus reis, assim os reis e as rainhas devem se dobrar perante os Sete Que São Um Só.
Está me dizendo para ajoelhar? Caso estivesse, não a conhecia muito bem.
- O certo seria que tivesse me cumprimentado na escada, com suas melhores vestes e a coroa de cristal na cabeça.
- Não temos nenhuma coroa, Vossa Graça.
Suas sobrancelhas franziram-se mais.
- O senhor meu pai deu ao seu antecessor uma coroa de rara beleza, trabalhada em cristal e ouro tecido.
- E por esta dádiva honramos seu pai em nossas preces - disse o Alto Septão - mas os pobres precisam mais de comida na barriga do que nós precisamos de ouro e cristal na cabeça. A coroa foi vendida. O mesmo aconteceu às outras que tínhamos nas câmaras subterrâneas, bem como todos os nossos anéis e vestes de pano de ouro e prata. A lã manterá os homens igualmente quentes. Foi para isso que os Sete nos deram as ovelhas.
Ele é completamente louco. Os Mais Devotos também deviam estar para eleger aquela criatura... Loucos, ou aterrorizados pelos pedintes que lhes batiam à porta. Os informadores de Qyburn diziam que Septão Luceon estava a nove votos da eleição quando aquelas portas tinham cedido, e uma torrente de pardais entrara no Grande Septo com seu líder nos ombros e machados nas mãos.
Fitou o homenzinho com um olhar gelado.
- Há algum lugar onde possamos falar com mais privacidade, Vossa Santidade?
O Alto Septão entregou a escova a um dos Mais Devotos.
- Se Vossa Graça me seguir...
Levou-a através das portas interiores, entrando no septo propriamente dito. Os passos de ambos ecoaram no chão de mármore. Partículas de pó dançavam nos feixes de luz colorida que entravam em diagonal pelos vitrais da grande cúpula. Incenso adoçava o ar, e ao lado dos sete altares brilhavam velas como se fossem estrelas. Um milhar tremeluzia para a Mãe, e quase outras tantas para a Donzela, mas era possível contar as velas do Estranho com duas mãos e ainda sobrariam dedos.
Até aquele local os pardais tinham invadido. Uma dúzia de cavaleiros andantes mal-vestidos estava ajoelhada perante o Guerreiro, suplicando-lhe que abençoasse as espadas que tinham empilhado aos seus pés. No altar da Mãe, um septão liderava as preces de uma centena de pardais, com vozes tão distantes como ondas batendo na costa. O Alto Septão levou Cersei até onde a Velha erguia sua lanterna. Quando se ajoelhou perante o altar, ela não teve outra escolha exceto ajoelhar-se ao seu lado. Misericordiosamente, aquele Alto Septão não era tão prolixo quanto o gordo tinha sido. Suponho que deva me sentir grata por isso.
Sua Alta Santidade não fez nenhum movimento para se erguer quando terminou a prece. Parecia que teriam de conferenciar de joelhos. Um estratagema de homem pequeno, pensou, parecendo se divertir.
- Alta Santidade - disse - esses pardais estão assustando a cidade. Quero que vão embora.
- Para onde hão de ir, Vossa Graça?
Há sete infernos, qualquer um servirá.
- Para o lugar de onde vieram, imagino.
- Eles vieram de todo lado. Assim como o pardal é o mais humilde e comum dos pássaros, eles são os mais humildes e comuns dos homens.
Eles são comuns, pelo menos nisso concordamos.
- Viu o que fizeram à estátua do Abençoado Baelor? Conspurcam a praça com seus porcos, cabras e dejetos noturnos.
- É mais fácil lavar dejetos noturnos do que sangue, Vossa Graça. Se a praça foi conspurcada, foi pela execução que aqui aconteceu.
Ele se atreve a atirar Ned Stark na minha cara?
- Todos a lamentamos. Joffrey era jovem, e não tão sensato como poderia ser. Lorde Stark devia ter sido decapitado em outro lugar, por respeito ao Abençoado Baelor... Mas o homem era um traidor, que não o esqueçamos.
- Rei Baelor perdoou aqueles que conspiraram contra si.
O Rei Baelor aprisionou as próprias irmãs, cujo único crime era serem belas. Da primeira vez que Cersei ouvira aquela história, dirigira-se ao berçário de Tyrion e beliscara o monstrinho até fazê-lo chorar. Devia ter apertado seu nariz e enfiado uma meia na sua boca. Forçou-se a sorrir.
- Rei Tommen também perdoará os pardais, depois de eles voltarem para suas casas.
- A maioria deles perdeu a casa. Há sofrimento por todo lado... e luto, e morte. Antes de vir para Porto Real, cuidava de meia centena de aldeolas, pequenas demais para terem seu próprio septo. Caminhava de uma aldeia até a seguinte celebrando casamentos, absolvendo pecadores de seus pecados, batizando recém-nascidos. Essas aldeias já não existem, Vossa Graça. Ervas daninhas e espinheiros crescem onde os jardins outrora floriam, e ossos entulham as margens das estradas.
- A guerra é uma coisa terrível. Essas atrocidades são obra dos nortenhos, e de Lorde Stannis e seus adoradores de demônios.
- Alguns de meus pardais falam de bandos de leões que os espoliaram... e do Cão de Caça, que era um homem juramentado a Vossa Graça. Em Salinas, matou um septão idoso e atacou uma garota de doze anos, uma criança inocente prometida à Fé. Usou a armadura enquanto a violava, e a terna carne da menina foi rasgada e esmagada pelo ferro da cota de malha. Quando acabou, deu-a aos seus homens, que lhe cortaram o nariz e os mamilos.
- Sua Graça não pode ser responsabilizada pelos crimes de todos os homens que um dia serviram a Casa Lannister. Sandor Clegane é um traidor e um bruto. Por que acha que o destituí de meu serviço? Ele agora luta pelo fora da lei Beric Dondarrion, não pelo Rei Tommen.
- É como diz. E no entanto é preciso perguntar: por onde andavam os cavaleiros do rei quando essas coisas aconteciam? Não é verdade que Jaehaerys, o Conciliador, um dia jurou pelo próprio Trono de Ferro que a coroa sempre protegeria e defenderia a Fé?
Cersei não fazia ideia do que Jaehaerys, o Conciliador, poderia ter jurado.
- É verdade - concordou - e o Alto Septão o abençoou e o ungiu como rei. É uma tradição que cada novo Alto Septão dê ao rei sua bênção... E no entanto se recusou a abençoar o Rei Tommen.
- Vossa Graça está enganada. Nós não nos recusamos.
- Não vieram.
- A hora ainda não está madura.
É um sacerdote ou um vendedor de hortaliças?
- E o que poderia fazer para torná-la... mais madura? - se ele se atrever a mencionar ouro, lidarei com este como lidei com o último, e encontrarei um piedoso garoto de oito anos para usar a coroa de cristal.
- O reino está cheio de reis. Para que a Fé enalteça um acima dos demais temos de ter certeza. Há trezentos anos, quando Aegon, o Dragão, desembarcou no sopé desta mesma colina, o Alto Septão trancou-se no interior do Septo Estrelado de Vilavelha e rezou durante sete dias e sete noites, sem ingerir nada além de pão e água. Quando saiu, anunciou que a Fé não se oporia a Aegon e às irmãs, pois a Velha erguera sua lanterna e lhe mostrara o caminho adiante. Se Vilavelha pegasse em armas contra o Dragão, Vilavelha arderia, e Torralta, Cidadela e o Septo Estrelado seriam derrubados e destruídos. Lorde Hightower era um homem devoto. Quando ouviu a profecia, manteve suas forças em casa e abriu os portões da cidade a Aegon quando ele chegou. E Sua Alta Santidade ungiu o Conquistador com os sete óleos. Eu devo fazer o que ele fez há trezentos anos. Devo rezar e jejuar.
- Durante sete dias e sete noites?
- Durante o tempo que for necessário.
Cersei sentiu vontade de esbofetear o solene e devoto rosto do homem. Podia ajudá-lo a jejuar, pensou. Podia trancar você em algum a torre e me assegurar de que ninguém lhe traria comida até os deuses falarem.
- Aqueles falsos reis abraçam falsos deuses - Cersei lembrou-lhe. - Só o Rei Tommen defende a Santa Fé.
- E, no entanto, os septos são queimados e saqueados por toda parte. Até irmãs silenciosas foram violadas, gritando sua angústia até o céu. Vossa Graça viu os ossos e os crânios de nossos santos mortos?
- Vi - obrigou-se a dizer. - Dê a Tommen sua bênção, e poremos fim a essas afrontas.
- E como fará tal coisa, Vossa Graça? Enviará um cavaleiro para percorrer as estradas com cada irmão mendicante? Dará homens para defender nossas septãs contra os lobos e os leões?
Vou fazer de conta que não falou de leões.
- O reino está em guerra. Sua Graça precisa de todos os homens - Cersei não pretendia esbanjar as forças de Tommen para que servissem de amas-secas a pardais, ou para proteger as bocetas enrugadas de um milhar de septãs. Metade delas provavelmente rezam por uma boa violação. - Seus pardais têm cacetes e machados. Que defendam a si próprios.
- As leis do Rei Maegor proíbem-nos, como Vossa Graça deve saber. Foi por decreto dele que a Fé pousou as espadas.
- Agora o rei é Tommen, não Maegor - que lhe importava o que Maegor, o Cruel, decretara trezentos anos antes? Em vez de tirar as espadas das mãos dos fiéis, devia tê-las usado para os seus próprios fins. Apontou para onde o Guerreiro se erguia por cima de seu altar de mármore vermelho. - O que ele tem na mão?
- Uma espada.
- Ele se esqueceu de como usá-la?
- As leis de Maegor...
- ... podem ser desfeitas - deixou aquilo pairar entre ambos, esperando que o Alto Septão engolisse a isca.
Ele não a desiludiu.
- A Fé Militante renascida... Esta seria a resposta para trezentos anos de preces, Vossa Graça. O Guerreiro voltaria a erguer sua espada brilhante e limparia este pecaminoso reino de todo o mal. Se Sua Graça me permitisse restaurar as antigas ordens abençoadas da Espada e da Estrela, todos os homens devotos dos Sete Reinos saberiam que ele é o nosso senhor legítimo e verdadeiro.
Era bom ouvir aquilo, mas Cersei teve o cuidado de não parecer muito ávida.
- Vossa Alta Santidade falou há pouco de perdão. Nestes tempos conturbados, Rei Tommen ficaria muito grato se pudesse arranjar maneira de perdoar a dívida da coroa. Parece-me que devemos à Fé cerca de novecentos mil dragões.
- Novecentos mil, seiscentos e setenta e quatro dragões. Ouro que poderia alimentar os famintos e reconstruir um milhar de septos.
- É ouro o que deseja? - perguntou a rainha. - Ou será que prefere ver aquelas poeirentas leis de Maegor postas de lado?
O Alto Septão refletiu sobre aquilo por um momento.
- Como quiser. Esta dívida será perdoada, e o Rei Tommen terá sua bênção. Os Filhos do Guerreiro me escoltarão até ele, brilhando na glória de sua Fé, enquanto meus pardais partem para defender os dóceis e humildes do mundo, renascidos como Pobres Irmãos, como antigamente.
A rainha se levantou e alisou as saias.
- Mandarei preparar os papéis, e Sua Graça os assinará e colocará o selo real neles -se havia alguma parte de ser rei que Tommen adorava, era brincar com o seu selo.
- Que os Sete protejam Sua Graça. Que tenha um longo reinado - o Alto Septão fez das mãos um campanário e ergueu os olhos para o céu. - Que os malvados tremam!
Está ouvindo isto, Lorde Stannis? Cersei não conseguiu conter um sorriso. Nem mesmo o senhor seu pai poderia ter se saído melhor. De um golpe, livrara Porto Real da praga dos pardais, assegurara a bênção de Tommen e diminuíra a dívida da coroa em quase um milhão de dragões. Tinha o coração pairando bem alto quando permitiu que o Alto Septão a acompanhasse de volta ao Salão das Lâmpadas.
A Senhora Merryweather partilhou o deleite da rainha, embora nunca tivesse ouvido falar dos Filhos do Guerreiro ou dos Pobres Irmãos.
- Datam de antes da Conquista de Aegon - explicou-lhe Cersei. - Os Filhos do Guerreiro eram uma ordem de cavaleiros que renunciavam às suas terras e ouro e juramentavam as espadas à Sua Alta Santidade. Os Pobres Irmãos... eram mais humildes, apesar de muito mais numerosos. Uma espécie de irmãos mendicantes, embora carregassem machados em vez de tigelas. Vagueavam pelas estradas escoltando viajantes de septo em septo e de vila em vila. Seu símbolo era a estrela de sete pontas, vermelha sobre branco, de modo que o povo simples os chamavam Estrelas. Os Filhos do Guerreiro usavam manto arco-íris e armadura com entalhes de prata por cima de cilícios, e traziam cristais em forma de estrela nos botões do punho da espada. Esses eram as Espadas. Homens santos, ascetas, fanáticos, feiticeiros, matadores de dragões, caçadores de demônios... havia muitas histórias sobre eles. Mas todos concordam que eram implacáveis em seu ódio por todos os inimigos da Santa Fé.
Senhora Merryweather compreendeu de imediato.
- Inimigos como Lorde Stannis e sua feiticeira vermelha, talvez?
- Ora, sim, por acaso - Cersei respondeu, rindo como uma menina. - Iniciamos um jarro de hipocraz ao fervor dos Filhos do Guerreiro no caminho para casa?
- Ao fervor dos Filhos do Guerreiro e ao brilhantismo da Rainha Regente. A Cersei, a Primeira do Seu Nome!
O hipocraz era tão doce e saboroso quanto o triunfo de Cersei, e a liteira da rainha pareceu quase flutuar enquanto atravessava a cidade de volta à Fortaleza Vermelha. Mas, na base da Colina de Aegon, encontraram Margaery Tyrell e as primas, que regressavam de um passeio. Ela me segue aonde quer que eu vá, pensou Cersei, aborrecida, quando pôs os olhos na pequena rainha.
Atrás de Margaery vinha uma longa comitiva de cortesãos, guardas e criados, muitos dos quais carregados com cestos de flores frescas. Cada uma das primas trazia um admirador a reboque; o espigado escudeiro Alyn Ambrose acompanhava Elinor, a quem encontrava-se prometido, Sor Tallad vinha com a tímida Alia, e Mark Mullendore, com seu único braço, seguia com Megga, rechonchuda e risonha. Os gêmeos Redwyne escoltavam duas das outras damas de Margaery, Meredith Crane e Janna Fossoway. Todas as mulheres traziam flores nos cabelos. Jalabhar Xho também se juntara ao grupo, tal como Sor Lambert Turnberry com sua pala e o bonito cantor conhecido como Bardo Azul.
E claro que um cavaleiro da Guarda Real tem de acompanhar a pequena rainha, e claro que é o Cavaleiro das Flores. Num a armadura de escamas brancas com entalhes de ouro, Sor Loras resplandecia. Embora já não tomasse a liberdade de treinar Tommen no manejo das armas, o rei ainda passava muito mais tempo do que devia em sua companhia. Todas as vezes que o garoto regressava de uma tarde passada com sua pequena esposa, tinha alguma nova história a contar sobre algo que Sor Loras dissera ou fizera.
Margaery saudou-os quando as duas colunas se encontraram e pôs-se ao lado da liteira da rainha. Tinha as bochechas rosadas, e os cachos castanhos caíam-lhe livremente em volta dos ombros, agitados por cada sopro de vento.
- Estávamos colhendo flores de outono na mata do rei - disse-lhes.
Eu sei onde esteve, pensou a rainha. Seus informantes eram muito bons em mantê-la a par dos movimentos de Margaery. É uma garota tão irrequieta, nossa pequena rainha. Raramente deixava que se passassem mais de dois dias sem que fosse passear a cavalo. Certos dias cavalgava ao longo da estrada de Rosby à caça de conchas e para comer junto ao mar. Outras vezes levava a comitiva para a outra margem do rio, a fim de passar uma tarde fazendo falcoaria. A pequena rainha gostava também de sair de barco, velejando para cima e para baixo ao longo da Torrente da Água Negra sem nenhum destino em particular. Quando sentia-se devota, deixava o castelo para ir rezar no Septo de Baelor. Tornou-se freguesa de uma dúzia de costureiras diferentes, era bem conhecida entre os ourives da cidade e até visitara o mercado de peixe perto do Portão da Lama, para dar uma olhadela na pesca do dia. Onde quer que fosse, o povo a adulava, e a Senhora Margaery fazia o que podia para alimentar seu ardor. Andava sempre dando esmolas a pedintes, comprando tortas quentes nas carroças dos padeiros e refreando o cavalo para falar com mercadores comuns.
Se dependesse dela, teria posto Tommen para fazer todas essas coisas. Andava eternamente convidando-o para acompanhá-la e às suas galinhas em suas aventuras, e o garoto eternamente suplicava à mãe permissão para ir. A rainha dera seu consentimento algumas vezes, apenas para permitir que Sor Osney passasse mais algumas horas na companhia de Margaery. E de muito isso serviu. Osney revelou-se um doloroso desapontamento.
“Lembra-se do dia em que sua irmã zarpou para Dorne?” perguntara Cersei ao filho. “Você se recorda dos uivos da turba quando voltávamos para o castelo? Das pedras, das pragas?” Mas o rei mostrara-se surdo ao bom-senso, graças à sua pequena rainha. “Se nos misturarmos aos plebeus, eles gostarão mais de nós.” “A turba gostou tanto do Alto Septão gordo que lhe desfez um membro de cada vez, e ele era um homem santo", forçara-o a se lembrar. Tudo que conseguira tinha sido deixá-lo emburrado. Tal como Margaery quer, aposto. Tenta me roubar Tommen todos os dias e de todas as maneiras. Joffrey teria visto além do seu sorriso de intriguista e a faria tomar consciência do seu lugar, mas Tommen era mais ingênuo. Ela sabia que Joff era forte demais para si mesma, Cersei pensou, lembrando-se da moeda de ouro que Qyburn encontrara. Para a Casa Tyrell ter esperança de governar, ele tinha de ser tirado do caminho. Recordou-se que Margaery e sua hedionda avó tinham outrora conspirado para casar Sansa Stark com o irmão aleijado da pequena rainha, Willas. Lorde Tywin se antecipara a elas, casando Sansa com Tyrion, mas a ligação estava lá. Estão todos juntos na intriga, compreendeu num sobressalto. Os Tyrell subornaram os carcereiros p ara libertar Tyrion e levaram-no às pressas estrada das rosas abaixo, para se ir juntar à sua desprezível noiva. A essa altura os dois estão a salvo em Jardim de Cima, escondidos atrás de uma muralha de rosas.
- Devia ter vindo conosco, Vossa Graça - tagarelou a pequena intriguista enquanto subiam a encosta da Colina de Aegon. - Podíamos ter passado horas tão agradáveis juntas. As árvores estão vestidas de dourado, vermelho e laranja, e há flores por todo lado. E castanhas também. Assamos algumas no caminho de volta.
- Não tenho tempo para cavalgar pelos bosques e colher flores - Cersei respondeu. - Tenho um reino para governar.
- Só um, Vossa Graça? Quem governa os outros seis? - Margaery soltou uma alegre gargalhadinha - Espero que perdoe meu gracejo. Conheço o fardo que carrega. Devia deixar-me partilhar a carga. Deve haver algumas coisas que eu possa fazer para ajudar. Acabaria com todo esse falatório sobre você e eu rivalizarmos pelo rei.
- É isso que dizem? - Cersei sorriu. - Que tolice. Nunca a considerei uma rival, nem por um momento.
- Agrada-me tanto ouvir isso - a garota não parecia perceber que fora golpeada. - Você e Tommen precisam vir conosco da próxima vez. Sei que Sua Graça adoraria. O Bardo Azul tocou para nós, e Sor Tallad nos mostrou como lutar com um bastão, como o povo luta. Os bosques são tão lindos no outono.
- Meu falecido marido também adorava a floresta - nos primeiros anos de casamento, Robert eternamente implorava para que Cersei fosse à caça com ele, mas ela sempre pedia dispensa. As viagens de caça de Robert permitiam-lhe passar tempo com Jaime. Dias de ouro e noites de prata. A dança que os dois tinham dançado fora decerto perigosa. Dentro da Fortaleza Vermelha havia olhos e ouvidos por todo lado, e nunca se podia ter certeza de quando Robert regressaria. De algum modo, o perigo só servira para fazer que o tempo passado juntos fosse ainda mais emocionante. - Mesmo assim, a beleza pode por vezes esconder um perigo mortal - ela preveniu a pequena rainha. - Robert perdeu a vida na floresta.
Margaery sorriu a Sor Loras; um sorriso doce e fraternal, cheio de carinho.
- Vossa Graça é gentil por temer por mim, mas meu irmão me mantém bem protegida.
Vá caçar, Cersei dissera a Robert meia centena de vezes. Meu irmão me mantém bem protegida. Recordou o que Taena lhe dissera horas antes, e uma gargalhada saltou-lhe dos lábios.
- Vossa Graça tem um riso tão lindo - Senhora Margaery lançou-lhe um sorriso zombeteiro. - Podemos saber qual é a piada?
- Saberá - a rainha respondeu. - Garanto a você que saberá.

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