Foi uma
lenta subida até o topo da Colina de Visenya. Enquanto os cavalos se
esforçavam para subir, a rainha recostou-se numa almofada vermelha
macia. De fora vinha a voz de Sor Osmund Kettleblack.
- Abram
alas. Limpem a rua. Abram alas para Sua Graça, a rainha.
-
Margaery realm ente mantém uma corte animada - Senhora Merryweather
dizia. - Temos malabaristas, saltimbancos, poetas, fantoches...
-
Cantores? - Cersei sugeriu.
- Mais do
que muitos, Vossa Graça. Hamish, o Harpista, toca para ela uma vez
por quinzena, e por vezes Alaric de Eysen nos entretém durante uma
noite, mas seu favorito é o Bardo Azul.
Cersei
recordava-se de ver o Bardo no casamento de Tommen. Jovem e bonito de
se olhar. Poderá haver aí alguma coisa?
- Ouvi
dizer que também há outros homens. Cavaleiros e cortesãos.
Admiradores. Diga-me a verdade, senhora. Acha que Margaery ainda é
donzela?
- Ela diz
que é, Vossa Graça.
-
Realmente diz. E você, diz o quê?
Os olhos
negros de Taena cintilaram de malícia.
- Quando
se casou com Lorde Renly em Jardim de Cima, ajudei a despi-lo. Sua
senhoria era um homem bem-feito e robusto. Vi a prova quando o
atiramos para a cama de núpcias onde sua noiva aguardava nua como no
dia de seu nome, com um lindo rubor por baixo da colcha. Sor Loras a
tinha trazido em pessoa degraus acima. Margaery pode dizer que o
casamento nunca foi consumado, que Lorde Renly bebera vinho demais no
banquete de casamento, mas garanto-lhe que aquilo que tinha entre as
pernas estava tudo, menos cansado, da última vez que o vi.
- Teria
por acaso visto a cama nupcial na manhã seguinte? - Cersei quis
saber. - Ela sangrou?
- Não
foi exibido nenhum lençol, Vossa Graça.
Uma pena.
Apesar de tudo, a ausência de um lençol ensanguentado, apenas,
pouco queria dizer. Tinha ouvido falar que as camponesas comuns
sangravam como porcos em sua noite de núpcias, mas isso era menos
verdadeiro no que dizia respeito a donzelas de nascimento elevado
como Margaery Tyrell. Dizia-se que era mais provável que a filha de
um lorde entregasse a virgindade a um cavalo do que a um marido, e
Margaery montava desde que tivera idade para andar.
-
Consta-me que a pequena rainha tem muitos admiradores entre os nossos
cavaleiros domésticos. Os gêmeos Redwyne, Sor Tallad... Diga-me,
quem mais?
Senhora
Merryweather encolheu os ombros.
- Sor
Lambert, o tolo que esconde um olho bom atrás de uma pala. Bayard
Norcross. Courtenay Greenhill. Os irmãos Woodwright, por vezes
Portifer e muitas vezes Lucantine. Oh, e o Grande Meistre Pycelle é
um visitante frequente.
-
Pycelle? Verdade? - teria aquele trêmulo e velho verme abandonado o
leão em favor da rosa? Se for verdade, irá se arrepender. - Quem
mais?
- O ilhéu
do verão com seu manto de penas. Como pude me esquecer dele, com sua
pele negra como tinta? Outros vêm cortejar as primas. Elinor está
prometida ao rapaz Ambrose, mas adora flertar, e Megga tem um novo
pretendente todas as quinzenas. Uma vez beijou um latrineiro na
cozinha. Ouvi falar sobre um casamento dela com o irmão da Senhora
Bulwer, mas estou certa de que se Megga pudesse escolher, preferiria
Mark Mullendore.
Cersei
soltou uma gargalhada.
- O
cavaleiro das borboletas que perdeu o braço na Água Negra? De que
serve metade de um homem?
- Megga
acha-o doce. Pediu à Senhora Margaery para ajudá-la a encontrar um
macaco para ele.
- Um
macaco - a rainha não soube o que dizer a respeito daquilo. Pardais
e macacos. É verdade, o reino está enlouquecendo. - E o nosso
valente Sor Loras? Com que frequência ele visita a irmã?
- Mais do
que qualquer dos outros - quando Taena franzia as sobrancelhas,
aparecia uma minúscula ruga entre seus olhos escuros. - Visita-a
todas as manhãs e todas as noites, a menos que seus deveres
interfiram. O irmão é devotado a ela, partilham tudo com... oh... -
por um momento a mulher de Myr pareceu quase chocada. Então, um
sorriso se espalhou por seu rosto. - Tive a mais perversa das ideias,
Vossa Graça.
- É
melhor guardá-la para você. A colina está repleta de pardais, e
todos sabemos como os pardais abominam a perversidade.
- Ouvi
dizer que também abominam o sabão e a água, Vossa Graça.
- Talvez
rezas demais roubem o olfato de um homem. Não me esquecerei de
perguntar a Sua Alta Santidade se isto é verdade.
As
cortinas tremulavam de um lado para o outro, numa onda de seda
carmesim.
- Orton
me disse que o Alto Septão não tem nome - Senhora Taena lembrou-se.
- Poderá ser verdade? Em Myr todos temos nomes.
- Oh, ele
teve nome um dia. Todos tiveram - a rainha fez um gesto de
indiferença com a mão - Até septões nascidos de sangue nobre
respondem apenas por seus nomes próprios depois de tomarem votos.
Quando um deles é elevado a Alto Septão, põe de lado também esse
nome. A Fé lhe dirá que ele já não tem necessidade de um nome de
homem, porque se transformou na manifestação dos deuses.
- Como
distingue os Altos Septões uns dos outros?
- Com
dificuldade. É preciso dizer "o gordo” ou “aquele que veio
antes do gordo” ou "o velho que morreu durante o sono”. É
sempre possível arrancar-lhes o nome próprio, se se quiser, mas
eles se ofendem se o usarmos. Faz que se lembrem de que um dia
nasceram como homens comuns, e não gostam disso.
- O
senhor meu marido me disse que este novo nasceu com sujeira debaixo
das unhas.
-
Suspeito que sim. Como regra, os Mais Devotos elevam um dos seus, mas
houve exceções - o Grande Meistre Pycelle a informara da história,
de forma detalhada e entediante. - Durante o reinado do Rei Baelor, o
Abençoado, um simples pedreiro foi escolhido como Alto Septão. O
homem trabalhava a pedra de forma tão bela que Baelor decidiu que
era o Ferreiro renascido em carne mortal. Não sabia ler nem
escrever, nem era capaz de se recordar das palavras da mais simples
das preces - ainda havia quem afirmasse que a Mão de Baelor mandara
envenenar o homem para poupar embaraços ao reino. - Depois de esse
Alto Septão morrer, foi elevado um garoto de oito anos, mais uma vez
por insistência do Rei Baelor. Sua Graça declarou que o garoto
operava milagres, embora nem mesmo suas pequenas mãos curandeiras
tivessem salvo Baelor durante seu último jejum.
Senhora
Merryweather soltou uma gargalhada.
- Oito
anos? Talvez meu filho possa ser Alto Septão. Tem quase sete.
- Ele
reza muito? - a rainha perguntou.
- Prefere
brincar com espadas.
- Então
é um garoto de verdade. É capaz de dizer o nome de todos os sete
deuses?
- Acho
que sim.
- Terei
de levá-lo em consideração - Cersei não duvidava de que havia uma
grande quantidade de garotos que honrariam mais a coroa de cristal do
que o desgraçado a quem os Mais Devotos haviam decidido outorgá-la.
Isso é o que acontece quando se deixa que idiotas e covardes
governem a si mesmos. Da próxima vez, escolherei seu chefe. E a
próxima vez podia não demorar muito a chegar se o novo Alto Septão
continuasse a aborrecê-la. A Mão de Baelor tinha pouco a ensinar a
Cersei Lannister em assuntos como esse.
- Saiam
do caminho! - Sor Osmund Kettleblack gritava. - Abram alas para a
Graça da Rainha!
A liteira
começou a parar, o que só podia querer dizer que estavam perto do
topo da colina.
- Devia
trazer esse seu filho para a corte - disse Cersei à Senhora
Merryweather. - Seis anos não é novo demais. Tommen precisa de
outros garotos à sua volta. Por que não o seu filho? - Joffrey
nunca tivera um amigo íntimo de sua idade, não que se lembrasse. O
pobre garoto sempre esteve só. Eu tinha Jaime quando era criança...
e Melara, até ela cair no poço. Joff gostara de Cão de Caça,
certamente, mas isso não era amizade. Procurava o pai que nunca
encontrara em Robert. Um irmãozinho adotivo pode ser justamente o
que Tommen precisa para se afastar de Margaery e de suas galinhas. A
seu tempo, podiam tornar-se tão próximos quanto Robert e seu amigo
de infância, Ned Stark. Um tolo, mas um tolo leal. Tommen precisará
de amigos leais que lhe vigiem a retaguarda.
- Vossa
Graça é bondosa, mas Russell nunca conheceu outro lar além de
Mesalonga. Temo que se sentiria perdido nesta grande cidade.
- A
princípio, sim - admitiu a rainha - mas logo superaria isso, assim
como eu superei. Quando meu pai mandou me trazerem para a corte,
chorei, e Jaime se enfureceu, até que minha tia se sentou comigo no
Jardim de Pedra e me disse que não havia ninguém em Porto Real que
devesse temer. “É uma leoa” disse, “e cabe a todas as feras
menores temerem você” Seu filho também encontrará sua coragem.
Certamente preferiria tê-lo por perto, onde pudesse vê-lo todos os
dias. É o seu único filho, não?
- Por
ora. O senhor meu marido pediu aos deuses para nos abençoar com
outro, para o caso de...
- Eu sei
- pensou em Joffrey, arranhando o pescoço. Em seus últimos momentos
olhara-a num apelo desesperado, e uma súbita recordação parara-lhe
o coração; uma gota de sangue rubro silvando na chama de uma vela,
uma voz coaxante que falava de coroas e mortalhas, de morte às mãos
do valonqar.
Fora da
liteira, Sor Osmund gritava qualquer coisa, e alguém gritava-lhe em
resposta. A liteira parou com um solavanco.
- Estão
todos mortos? - rugiu Kettleblack. - Saiam da porcaria do caminho!
A rainha
puxou para trás um canto da cortina e chamou Sor Meryn Trant com um
gesto.
- O que
está acontecendo?
- São os
pardais, Vossa Graça - Sor Meryn usava armadura de escamas brancas
por baixo do manto. Seu elmo e seu escudo estavam pendurados na sela.
- Acampados na rua. Faremos que se mexam.
- Faça-o,
mas com gentileza. Não quero ser apanhada em outro tumulto - Cersei
deixou a cortina cair. - Isso é absurdo.
- Sim,
Vossa Graça - concordou a Senhora Merryweather. - O Alto Septão
devia ter vindo ter com você. E esses deploráveis pardais...
- Ele os
alimenta, os acaricia, os abençoa. E no entanto não quer abençoar
o rei - sabia que a bênção era um ritual vazio, mas os rituais e
as cerimônias tinham poder aos olhos dos ignorantes. O próprio
Aegon, o Conquistador, determinara que o início de seu reinado se
dera no dia em que o Alto Septão o ungira em Vilavelha. - Esse
miserável sacerdote irá obedecer, caso contrário descobrirá quão
fraco e humano ainda é.
- Orton
diz que o que ele realmente quer é ouro. Que pretende reter a bênção
até que a coroa retome os pagamentos.
- A Fé
terá seu ouro assim que tenhamos paz - os Septões Torbert e Raynard
tinham se mostrado muito compreensivos no que dizia respeito à sua
promessa... Ao contrário dos malditos bravosianos, que perseguiram o
pobre Lorde Gyles tão impiedosamente que ele caíra de cama,
tossindo sangue. Precisávamos daqueles navios. Não podia depender
da Árvore para a marinha; os Redwyne eram próximos demais dos
Tyrell, Precisava de suas próprias forças no mar.
Os
dromones que se erguiam no rio lhe dariam isso. O navio-almirante
teria duas vezes mais remos do que o Martelo do Rei Robert, Aurane
pedira-lhe autorização para lhe dar como nome Lorde Tywin, e Cersei
ficara feliz por conceder. Esperava com antecipação ouvir os homens
falar do casco e dos remos do pai. Outro dos navios se chamaria Doce
Cersei, e teria uma figura de proa dourada, esculpida à sua
semelhança, vestida de cota de malha, com um elmo de leão e uma
lança na mão. Valente Joffrey, Senhora Joanna e Leoa a seguiriam
para o mar, em conjunto com Rainha Margaery, Rosa Dourada, Lorde
Renly, Senhora Olenna e Princesa Myrcella. A rainha cometera o erro
de dizer a Tommen que podia batizar os últimos cinco. Ele chegara a
escolher Rapaz Lua para um deles. Só quando Lorde Aurane sugerira
que os homens talvez não quisessem servir num navio batizado em
honra de um bobo é que o garoto concordara relutantemente em honrar
a irmã.
- Se esse
septão esfarrapado planeja me obrigar a comprar a bênção de
Tommen, em breve aprenderá umas coisas - disse a Taena. A rainha não
pretendia se submeter a uma matilha de sacerdotes.
A liteira
voltou a parar, tão subitamente que Cersei se sobressaltou,
- Oh,
isto é de enfurecer - voltou a se debruçar para fora e viu que
tinham chegado ao topo da Colina de Visenya. Em frente, erguia-se o
Grande Septo de Baelor, com sua magnífica cúpula e sete torres
brilhantes, mas entre si e os degraus de mármore estendia-se um
soturno mar de humanidade, marrom, esfarrapado e sujo. Pardais,
pensou, fungando, embora nenhum deles algum dia tivesse exalado
cheiro tão fétido.
Cersei
ficou espantada. Qyburn trouxera-lhe relatórios sobre a quantidade
de pardais, mas ouvir falar dos números era uma coisa, e outra era
vê-los. Centenas e mais centenas estavam acampados na praça, nos
jardins. Suas fogueiras enchiam o ar de fumaça e cheiros ruins.
Tendas de ráfia e cabanas miseráveis feitas de lama e pedaços de
madeira sujavam o imaculado mármore branco. Estavam aninhados até
nos degraus, sob as altas portas do Grande Septo.
Sor
Osmund regressou a trote para junto dela. Ao seu lado seguia Sor
Osfryd, montado num garanhão tão dourado quanto seu manto. Osfryd
era o Kettleblack do meio, mais calado do que os irmãos, e mais
inclinado a franzir as sobrancelhas do que a sorrir. E também mais
cruel, se as histórias forem verdadeiras. Talvez devesse tê-lo
enviado para a Muralha.
O Grande
Meistre Pycelle quisera um homem mais velho, “mais experiente nos
usos da guerra” para comandar os homens de manto dourado, e vários
dos outros conselheiros tinham concordado com ele.
“Sor
Osfryd tem experiência suficiente” dissera-lhes, mas nem mesmo
isso os calara. Latem para mim como uma matilha de cãezinhos
irritantes. Já praticamente esgotara sua paciência com Pycelle. O
homem até tivera a audácia de levantar objeções quando falara em
mandar buscar um mestre de armas em Dome, com o argumento de que isso
poderia ofender os Tyrell. “Por que acha que estou fazendo isso?”
perguntara a ele desdenhosamente.
- Perdão,
Vossa Graça - disse Sor Osmund. - Meu irmão chamou mais homens de
manto dourado. Abriremos uma passagem, não tema.
- Não
tenho tempo. Prosseguirei a pé.
- Por
favor, Vossa Graça - Taena pegou-lhe o braço. - Eles me assustam.
São centenas, e tão sujos.
Cersei
beijou-lhe o rosto.
- O leão
não teme o pardal... mas é bom que se preocupe. Eu sei que gosta
bastante de mim, senhora. Sor Osmund, tenha a bondade de me ajudar a
descer.
Se
soubesse que precisaria caminhar, teria me vestido de acordo. Trazia
um vestido branco fendido com pano de ouro, rendado, mas recatado.
Tinham se passado vários anos desde a última vez que o envergara, e
a rainha achava-o desconfortavelmente apertado na cintura.
- Sor
Osmund, Sor Meryn, me acompanhem. Sor Osfryd, assegure-se de que nada
de mal aconteça à minha liteira - alguns dos pardais pareciam
suficientemente descarnados e de olhos vazios para comer seus
cavalos.
Enquanto
abria caminho através da multidão esfarrapada, passando por suas
fogueiras, carroças e rudes abrigos, a rainha deu por si
lembrando-se de outra multidão que um dia se reunira naquela praça.
No dia em que se casara com Robert Baratheon, milhares tinham
aparecido para aclamá-los. Todas as mulheres usavam suas melhores
roupas, e metade dos homens trazia crianças nos ombros. Quando
emergira de dentro do septo, de mão dada com o jovem rei, a multidão
soltara um rugido tão alto que poderia ter sido ouvido em
Lanisporto.
“Eles
gostam bastante de você, senhora” murmurara-lhe Robert ao ouvido.
“Veja, todos os rostos estão sorrindo.” Durante aquele curto
momento, fora feliz no casamento... até lançar por acaso um relance
a Jaime. N ão, lembrava-se de ter pensado, não são todos os
rostos, senhor.
Agora
ninguém sorria. Os olhares que os pardais lhe lançavam eram
mortiços, carrancudos, hostis. Abriam caminho, mas com relutância.
Se fossem mesmo pardais, um grito os teria feito voar. Uma centena de
homens de manto dourado com lanças, espadas e m aças limparia essa
gentalha bem depressa. Seria isso que Lorde Tywin teria feito. Ele
teria cavalgado por cima deles, em vez de caminhar através da
populaça.
Quando
viu o que tinham feito a Baelor, o Adorado, a rainha teve motivos
para se arrepender do seu coração suave. A grande estátua de
mármore, que durante cem anos sorrira serenamente sobre a praça,
estava enterrada até a cintura numa pilha de ossos e crânios.
Alguns dos crânios mostravam pedaços de carne ainda agarrada. Um
corvo encontrava-se pousado em um desses crânios, desfrutando de um
banquete seco com uma consistência de couro. Havia moscas por todo
lado.
- Que
significa isto? - perguntou Cersei à multidão. - Pretendem enterrar
o Abençoado Baelor numa montanha de carniça?
Um homem
perneta deu um passo em frente, apoiado numa muleta de madeira.
- Vossa
Graça, esses são os ossos de homens e mulheres santos, assassinados
devido à sua fé, Septões, septãs, irmãos negros, pardos e
verdes, irmãs brancas, azuis e cinzentas. Alguns foram enforcados,
outros estripados. Septos foram pilhados, donzelas e mães foram
violadas por homens ímpios e adoradores de demônios. Até irmãs
silenciosas foram molestadas. A Mãe no Céu chora em angústia.
Trouxemos seus ossos de todo o reino até aqui para servir de
testemunho à agonia da Santa Fé.
Cersei
sentia o peso dos olhos sobre si.
- O rei
saberá dessas atrocidades - respondeu solenemente. - Tommen
partilhará de sua indignação. Isto é obra de Stannis e de sua
bruxa vermelha, e dos nortenhos selvagens que adoram árvores e lobos
- ergueu a voz: - Bom povo, seus mortos serão vingados!
Alguns
aclamaram, mas só alguns.
- Não
pedimos vingança por nossos mortos - disse o perneta - apenas
proteção para os vivos. Para os septos e lugares santos.
- O Trono
de Ferro tem de defender a Fé - resmungou um homem corpulento e
grosseiro, com uma estrela de sete pontas pintada na testa. - Um rei
que não protege seu povo não é rei nenhum - murmúrios de
assentimento ergueram-se entre aqueles que o cercavam. Um homem teve
a audácia de agarrar no pulso de Sor Meryn e dizer:
- É
tempo de todos os cavaleiros ungidos renunciarem aos seus senhores
terrenos e defenderem a nossa Santa Fé. Junte-se a nós, Sor, se ama
os Sete.
- Tire as
mãos de cima de mim - Sor Meryn bradou, libertando-se com uma
sacudidela.
- Estou
ouvindo-os - disse Cersei. - Meu filho é jovem, mas ama bastante os
Sete. Terão a sua proteção, e a minha.
O homem
com a estrela na testa não se mostrou apaziguado,
- O
Guerreiro nos defenderá - disse - não esse rei garoto gordo.
Meryn
Trant estendeu a mão para a espada, mas Cersei o parou antes que a
desembainhasse. Tinha apenas dois cavaleiros no meio de um mar de
pardais. Via bastões e foices, clavas e maças, vários machados.
- Não
quero sangue derramado neste lugar sagrado, Sor - por que todos os
homens são umas crianças? Abata ele e os outros nos desfarão
membro a membro. - Somos todos filhos da Mãe. Venha, Sua Alta
Santidade nos espera - mas, ao abrir caminho na direção dos degraus
do septo, um bando de homens armados saiu e bloqueou as portas.
Usavam cota de malha e couro fervido, com pedaços de placa de aço
amassados aqui e ali. Alguns traziam lanças, e outros, espadas. Eram
mais numerosos os que preferiam machados, e tinham estrelas vermelhas
cosidas em seus sobretudos embranquecidos. Dois deles tiveram a
insolência de cruzar as lanças e barrar-lhe a passagem.
- É
assim que recebem sua rainha? - perguntou-lhes. - Digam-me, onde
estão Raynard e Torbert? - não era hábito desses dois perderem uma
oportunidade para adulá-la. Torbert fazia sempre alarde de se pôr
de joelhos para lhe lavar os pés.
- Não
conheço os homens de que fala - disse um dos homens com uma estrela
vermelha no sobretudo - mas se pertencerem à Fé, certamente os Sete
tiveram necessidade dos seus serviços,
- Septão
Raynard e Septão Torbert pertencem aos Mais Devotos - Cersei
respondeu - e ficarão furiosos quando souberem que obstruiu minha
passagem. Pretende negar-me a entrada no septo sagrado de Baelor?
- Vossa
Graça - disse um homem de barba grisalha com um ombro curvado. - É
bem-vinda aqui, mas seus homens deverão deixar o cinto da espada.
Não são permitidas armas lá dentro, por ordens do Alto Septão.
-
Cavaleiros da Guarda Real não põem de lado suas espadas, nem mesmo
na presença do rei.
- Na casa
do rei, deverá reinar a palavra do rei - respondeu o cavaleiro idoso
- mas esta é a casa dos deuses.
A cor
subiu-lhe ao rosto. Bastaria dizer uma palavra a Meryn Trant e aquele
grisalho de costas arqueadas iria se encontrar com seus deuses mais
cedo do que talvez preferisse. Mas aqui não. Agora não.
- Espere
por mim - disse secamente à Guarda Real. Sozinha, subiu os degraus.
Os Lanceiros descruzaram as lanças. Outros dois homens encostaram
seu peso às portas, e elas se afastaram com um grande rangido.
No Salão
das Lâmpadas, Cersei foi encontrar uma vintena de septões de
joelhos, mas não em oração. Tinham baldes de água e sabão e
esfregavam o chão. Suas vestes de tecido grosseiro e sandálias
levaram Cersei a tomá-los por pardais, até que um deles ergueu a
cabeça. Tinha o rosto vermelho como uma beterraba, e bolhas
rebentadas sangravam em suas mãos.
- Vossa
Graça.
- Septão
Raynard? - a rainha quase não conseguia crer no que via. - O que faz
de joelhos?
- Está
limpando o chão - o homem que falou era vários centímetros mais
baixo do que a rainha e magro como um pau de vassoura. - O trabalho é
uma forma de prece, muito do agrado do Ferreiro - o homem se
levantou, de escova na mão. -Vossa Graça. Temos estado à sua
espera.
A barba
do homem era grisalha, castanha e cortada curta, os cabelos atados
num nó apertado por trás da cabeça. Embora as vestes que envergava
estivessem limpas, estavam também puídas e remendadas. Enrolara as
mangas até os cotovelos enquanto esfregava o chão, mas abaixo dos
joelhos o pano estava encharcado. O rosto era marcadamente
pontiagudo, com olhos encovados castanhos como lama. Seus pés estão
nus, Cersei percebeu, consternada. E também eram hediondos, umas
coisas duras e coriáceas, tornadas grossas por calos.
- É você
Sua Alta Santidade?
- Sim.
Pai, dê-m
e forças. A rainha sabia que devia se ajoelhar, mas o chão estava
molhado com sabão e água suja, e ela não desejava estragar o
vestido. Lançou um relance aos velhos de joelhos.
- Não
vejo o meu amigo, o Septão Torbert.
- Septão
Torbert foi confinado a uma cela de penitente, a pão e água. É um
pecado que um homem seja tão gordo quando metade do reino passa
fome.
Cersei já
aguentara o suficiente por um dia. Deixou-o ver sua ira.
- É
assim que me cumprimenta? Com uma escova na mão, pingando água?
Sabe quem eu sou?
- Vossa
Graça é a Rainha Regente dos Sete Reinos - o homem disse - mas na
Estrela de Sete Pontas está escrito que tal como os homens se dobram
perante seus senhores e os senhores perante seus reis, assim os reis
e as rainhas devem se dobrar perante os Sete Que São Um Só.
Está me
dizendo para ajoelhar? Caso estivesse, não a conhecia muito bem.
- O certo
seria que tivesse me cumprimentado na escada, com suas melhores
vestes e a coroa de cristal na cabeça.
- Não
temos nenhuma coroa, Vossa Graça.
Suas
sobrancelhas franziram-se mais.
- O
senhor meu pai deu ao seu antecessor uma coroa de rara beleza,
trabalhada em cristal e ouro tecido.
- E por
esta dádiva honramos seu pai em nossas preces - disse o Alto Septão
- mas os pobres precisam mais de comida na barriga do que nós
precisamos de ouro e cristal na cabeça. A coroa foi vendida. O mesmo
aconteceu às outras que tínhamos nas câmaras subterrâneas, bem
como todos os nossos anéis e vestes de pano de ouro e prata. A lã
manterá os homens igualmente quentes. Foi para isso que os Sete nos
deram as ovelhas.
Ele é
completamente louco. Os Mais Devotos também deviam estar para eleger
aquela criatura... Loucos, ou aterrorizados pelos pedintes que lhes
batiam à porta. Os informadores de Qyburn diziam que Septão Luceon
estava a nove votos da eleição quando aquelas portas tinham cedido,
e uma torrente de pardais entrara no Grande Septo com seu líder nos
ombros e machados nas mãos.
Fitou o
homenzinho com um olhar gelado.
- Há
algum lugar onde possamos falar com mais privacidade, Vossa
Santidade?
O Alto
Septão entregou a escova a um dos Mais Devotos.
- Se
Vossa Graça me seguir...
Levou-a
através das portas interiores, entrando no septo propriamente dito.
Os passos de ambos ecoaram no chão de mármore. Partículas de pó
dançavam nos feixes de luz colorida que entravam em diagonal pelos
vitrais da grande cúpula. Incenso adoçava o ar, e ao lado dos sete
altares brilhavam velas como se fossem estrelas. Um milhar tremeluzia
para a Mãe, e quase outras tantas para a Donzela, mas era possível
contar as velas do Estranho com duas mãos e ainda sobrariam dedos.
Até
aquele local os pardais tinham invadido. Uma dúzia de cavaleiros
andantes mal-vestidos estava ajoelhada perante o Guerreiro,
suplicando-lhe que abençoasse as espadas que tinham empilhado aos
seus pés. No altar da Mãe, um septão liderava as preces de uma
centena de pardais, com vozes tão distantes como ondas batendo na
costa. O Alto Septão levou Cersei até onde a Velha erguia sua
lanterna. Quando se ajoelhou perante o altar, ela não teve outra
escolha exceto ajoelhar-se ao seu lado. Misericordiosamente, aquele
Alto Septão não era tão prolixo quanto o gordo tinha sido. Suponho
que deva me sentir grata por isso.
Sua Alta
Santidade não fez nenhum movimento para se erguer quando terminou a
prece. Parecia que teriam de conferenciar de joelhos. Um estratagema
de homem pequeno, pensou, parecendo se divertir.
- Alta
Santidade - disse - esses pardais estão assustando a cidade. Quero
que vão embora.
- Para
onde hão de ir, Vossa Graça?
Há sete
infernos, qualquer um servirá.
- Para o
lugar de onde vieram, imagino.
- Eles
vieram de todo lado. Assim como o pardal é o mais humilde e comum
dos pássaros, eles são os mais humildes e comuns dos homens.
Eles são
comuns, pelo menos nisso concordamos.
- Viu o
que fizeram à estátua do Abençoado Baelor? Conspurcam a praça com
seus porcos, cabras e dejetos noturnos.
- É mais
fácil lavar dejetos noturnos do que sangue, Vossa Graça. Se a praça
foi conspurcada, foi pela execução que aqui aconteceu.
Ele se
atreve a atirar Ned Stark na minha cara?
- Todos a
lamentamos. Joffrey era jovem, e não tão sensato como poderia ser.
Lorde Stark devia ter sido decapitado em outro lugar, por respeito ao
Abençoado Baelor... Mas o homem era um traidor, que não o
esqueçamos.
- Rei
Baelor perdoou aqueles que conspiraram contra si.
O Rei
Baelor aprisionou as próprias irmãs, cujo único crime era serem
belas. Da primeira vez que Cersei ouvira aquela história,
dirigira-se ao berçário de Tyrion e beliscara o monstrinho até
fazê-lo chorar. Devia ter apertado seu nariz e enfiado uma meia na
sua boca. Forçou-se a sorrir.
- Rei
Tommen também perdoará os pardais, depois de eles voltarem para
suas casas.
- A
maioria deles perdeu a casa. Há sofrimento por todo lado... e luto,
e morte. Antes de vir para Porto Real, cuidava de meia centena de
aldeolas, pequenas demais para terem seu próprio septo. Caminhava de
uma aldeia até a seguinte celebrando casamentos, absolvendo
pecadores de seus pecados, batizando recém-nascidos. Essas aldeias
já não existem, Vossa Graça. Ervas daninhas e espinheiros crescem
onde os jardins outrora floriam, e ossos entulham as margens das
estradas.
- A
guerra é uma coisa terrível. Essas atrocidades são obra dos
nortenhos, e de Lorde Stannis e seus adoradores de demônios.
- Alguns
de meus pardais falam de bandos de leões que os espoliaram... e do
Cão de Caça, que era um homem juramentado a Vossa Graça. Em
Salinas, matou um septão idoso e atacou uma garota de doze anos, uma
criança inocente prometida à Fé. Usou a armadura enquanto a
violava, e a terna carne da menina foi rasgada e esmagada pelo ferro
da cota de malha. Quando acabou, deu-a aos seus homens, que lhe
cortaram o nariz e os mamilos.
- Sua
Graça não pode ser responsabilizada pelos crimes de todos os homens
que um dia serviram a Casa Lannister. Sandor Clegane é um traidor e
um bruto. Por que acha que o destituí de meu serviço? Ele agora
luta pelo fora da lei Beric Dondarrion, não pelo Rei Tommen.
- É como
diz. E no entanto é preciso perguntar: por onde andavam os
cavaleiros do rei quando essas coisas aconteciam? Não é verdade que
Jaehaerys, o Conciliador, um dia jurou pelo próprio Trono de Ferro
que a coroa sempre protegeria e defenderia a Fé?
Cersei
não fazia ideia do que Jaehaerys, o Conciliador, poderia ter jurado.
- É
verdade - concordou - e o Alto Septão o abençoou e o ungiu como
rei. É uma tradição que cada novo Alto Septão dê ao rei sua
bênção... E no entanto se recusou a abençoar o Rei Tommen.
- Vossa
Graça está enganada. Nós não nos recusamos.
- Não
vieram.
- A hora
ainda não está madura.
É um
sacerdote ou um vendedor de hortaliças?
- E o que
poderia fazer para torná-la... mais madura? - se ele se atrever a
mencionar ouro, lidarei com este como lidei com o último, e
encontrarei um piedoso garoto de oito anos para usar a coroa de
cristal.
- O reino
está cheio de reis. Para que a Fé enalteça um acima dos demais
temos de ter certeza. Há trezentos anos, quando Aegon, o Dragão,
desembarcou no sopé desta mesma colina, o Alto Septão trancou-se no
interior do Septo Estrelado de Vilavelha e rezou durante sete dias e
sete noites, sem ingerir nada além de pão e água. Quando saiu,
anunciou que a Fé não se oporia a Aegon e às irmãs, pois a Velha
erguera sua lanterna e lhe mostrara o caminho adiante. Se Vilavelha
pegasse em armas contra o Dragão, Vilavelha arderia, e Torralta,
Cidadela e o Septo Estrelado seriam derrubados e destruídos. Lorde
Hightower era um homem devoto. Quando ouviu a profecia, manteve suas
forças em casa e abriu os portões da cidade a Aegon quando ele
chegou. E Sua Alta Santidade ungiu o Conquistador com os sete óleos.
Eu devo fazer o que ele fez há trezentos anos. Devo rezar e jejuar.
- Durante
sete dias e sete noites?
- Durante
o tempo que for necessário.
Cersei
sentiu vontade de esbofetear o solene e devoto rosto do homem. Podia
ajudá-lo a jejuar, pensou. Podia trancar você em algum a torre e me
assegurar de que ninguém lhe traria comida até os deuses falarem.
- Aqueles
falsos reis abraçam falsos deuses - Cersei lembrou-lhe. - Só o Rei
Tommen defende a Santa Fé.
- E, no
entanto, os septos são queimados e saqueados por toda parte. Até
irmãs silenciosas foram violadas, gritando sua angústia até o céu.
Vossa Graça viu os ossos e os crânios de nossos santos mortos?
- Vi -
obrigou-se a dizer. - Dê a Tommen sua bênção, e poremos fim a
essas afrontas.
- E como
fará tal coisa, Vossa Graça? Enviará um cavaleiro para percorrer
as estradas com cada irmão mendicante? Dará homens para defender
nossas septãs contra os lobos e os leões?
Vou fazer
de conta que não falou de leões.
- O reino
está em guerra. Sua Graça precisa de todos os homens - Cersei não
pretendia esbanjar as forças de Tommen para que servissem de
amas-secas a pardais, ou para proteger as bocetas enrugadas de um
milhar de septãs. Metade delas provavelmente rezam por uma boa
violação. - Seus pardais têm cacetes e machados. Que defendam a si
próprios.
- As leis
do Rei Maegor proíbem-nos, como Vossa Graça deve saber. Foi por
decreto dele que a Fé pousou as espadas.
- Agora o
rei é Tommen, não Maegor - que lhe importava o que Maegor, o Cruel,
decretara trezentos anos antes? Em vez de tirar as espadas das mãos
dos fiéis, devia tê-las usado para os seus próprios fins. Apontou
para onde o Guerreiro se erguia por cima de seu altar de mármore
vermelho. - O que ele tem na mão?
- Uma
espada.
- Ele se
esqueceu de como usá-la?
- As leis
de Maegor...
- ...
podem ser desfeitas - deixou aquilo pairar entre ambos, esperando que
o Alto Septão engolisse a isca.
Ele não
a desiludiu.
- A Fé
Militante renascida... Esta seria a resposta para trezentos anos de
preces, Vossa Graça. O Guerreiro voltaria a erguer sua espada
brilhante e limparia este pecaminoso reino de todo o mal. Se Sua
Graça me permitisse restaurar as antigas ordens abençoadas da
Espada e da Estrela, todos os homens devotos dos Sete Reinos saberiam
que ele é o nosso senhor legítimo e verdadeiro.
Era bom
ouvir aquilo, mas Cersei teve o cuidado de não parecer muito ávida.
- Vossa
Alta Santidade falou há pouco de perdão. Nestes tempos conturbados,
Rei Tommen ficaria muito grato se pudesse arranjar maneira de perdoar
a dívida da coroa. Parece-me que devemos à Fé cerca de novecentos
mil dragões.
-
Novecentos mil, seiscentos e setenta e quatro dragões. Ouro que
poderia alimentar os famintos e reconstruir um milhar de septos.
- É ouro
o que deseja? - perguntou a rainha. - Ou será que prefere ver
aquelas poeirentas leis de Maegor postas de lado?
O Alto
Septão refletiu sobre aquilo por um momento.
- Como
quiser. Esta dívida será perdoada, e o Rei Tommen terá sua bênção.
Os Filhos do Guerreiro me escoltarão até ele, brilhando na glória
de sua Fé, enquanto meus pardais partem para defender os dóceis e
humildes do mundo, renascidos como Pobres Irmãos, como antigamente.
A rainha
se levantou e alisou as saias.
-
Mandarei preparar os papéis, e Sua Graça os assinará e colocará o
selo real neles -se havia alguma parte de ser rei que Tommen adorava,
era brincar com o seu selo.
- Que os
Sete protejam Sua Graça. Que tenha um longo reinado - o Alto Septão
fez das mãos um campanário e ergueu os olhos para o céu. - Que os
malvados tremam!
Está
ouvindo isto, Lorde Stannis? Cersei não conseguiu conter um sorriso.
Nem mesmo o senhor seu pai poderia ter se saído melhor. De um golpe,
livrara Porto Real da praga dos pardais, assegurara a bênção de
Tommen e diminuíra a dívida da coroa em quase um milhão de
dragões. Tinha o coração pairando bem alto quando permitiu que o
Alto Septão a acompanhasse de volta ao Salão das Lâmpadas.
A Senhora
Merryweather partilhou o deleite da rainha, embora nunca tivesse
ouvido falar dos Filhos do Guerreiro ou dos Pobres Irmãos.
- Datam
de antes da Conquista de Aegon - explicou-lhe Cersei. - Os Filhos do
Guerreiro eram uma ordem de cavaleiros que renunciavam às suas
terras e ouro e juramentavam as espadas à Sua Alta Santidade. Os
Pobres Irmãos... eram mais humildes, apesar de muito mais numerosos.
Uma espécie de irmãos mendicantes, embora carregassem machados em
vez de tigelas. Vagueavam pelas estradas escoltando viajantes de
septo em septo e de vila em vila. Seu símbolo era a estrela de sete
pontas, vermelha sobre branco, de modo que o povo simples os chamavam
Estrelas. Os Filhos do Guerreiro usavam manto arco-íris e armadura
com entalhes de prata por cima de cilícios, e traziam cristais em
forma de estrela nos botões do punho da espada. Esses eram as
Espadas. Homens santos, ascetas, fanáticos, feiticeiros, matadores
de dragões, caçadores de demônios... havia muitas histórias sobre
eles. Mas todos concordam que eram implacáveis em seu ódio por
todos os inimigos da Santa Fé.
Senhora
Merryweather compreendeu de imediato.
-
Inimigos como Lorde Stannis e sua feiticeira vermelha, talvez?
- Ora,
sim, por acaso - Cersei respondeu, rindo como uma menina. - Iniciamos
um jarro de hipocraz ao fervor dos Filhos do Guerreiro no caminho
para casa?
- Ao
fervor dos Filhos do Guerreiro e ao brilhantismo da Rainha Regente. A
Cersei, a Primeira do Seu Nome!
O
hipocraz era tão doce e saboroso quanto o triunfo de Cersei, e a
liteira da rainha pareceu quase flutuar enquanto atravessava a cidade
de volta à Fortaleza Vermelha. Mas, na base da Colina de Aegon,
encontraram Margaery Tyrell e as primas, que regressavam de um
passeio. Ela me segue aonde quer que eu vá, pensou Cersei,
aborrecida, quando pôs os olhos na pequena rainha.
Atrás de
Margaery vinha uma longa comitiva de cortesãos, guardas e criados,
muitos dos quais carregados com cestos de flores frescas. Cada uma
das primas trazia um admirador a reboque; o espigado escudeiro Alyn
Ambrose acompanhava Elinor, a quem encontrava-se prometido, Sor
Tallad vinha com a tímida Alia, e Mark Mullendore, com seu único
braço, seguia com Megga, rechonchuda e risonha. Os gêmeos Redwyne
escoltavam duas das outras damas de Margaery, Meredith Crane e Janna
Fossoway. Todas as mulheres traziam flores nos cabelos. Jalabhar Xho
também se juntara ao grupo, tal como Sor Lambert Turnberry com sua
pala e o bonito cantor conhecido como Bardo Azul.
E claro
que um cavaleiro da Guarda Real tem de acompanhar a pequena rainha, e
claro que é o Cavaleiro das Flores. Num a armadura de escamas
brancas com entalhes de ouro, Sor Loras resplandecia. Embora já não
tomasse a liberdade de treinar Tommen no manejo das armas, o rei
ainda passava muito mais tempo do que devia em sua companhia. Todas
as vezes que o garoto regressava de uma tarde passada com sua pequena
esposa, tinha alguma nova história a contar sobre algo que Sor Loras
dissera ou fizera.
Margaery
saudou-os quando as duas colunas se encontraram e pôs-se ao lado da
liteira da rainha. Tinha as bochechas rosadas, e os cachos castanhos
caíam-lhe livremente em volta dos ombros, agitados por cada sopro de
vento.
-
Estávamos colhendo flores de outono na mata do rei - disse-lhes.
Eu sei
onde esteve, pensou a rainha. Seus informantes eram muito bons em
mantê-la a par dos movimentos de Margaery. É uma garota tão
irrequieta, nossa pequena rainha. Raramente deixava que se passassem
mais de dois dias sem que fosse passear a cavalo. Certos dias
cavalgava ao longo da estrada de Rosby à caça de conchas e para
comer junto ao mar. Outras vezes levava a comitiva para a outra
margem do rio, a fim de passar uma tarde fazendo falcoaria. A pequena
rainha gostava também de sair de barco, velejando para cima e para
baixo ao longo da Torrente da Água Negra sem nenhum destino em
particular. Quando sentia-se devota, deixava o castelo para ir rezar
no Septo de Baelor. Tornou-se freguesa de uma dúzia de costureiras
diferentes, era bem conhecida entre os ourives da cidade e até
visitara o mercado de peixe perto do Portão da Lama, para dar uma
olhadela na pesca do dia. Onde quer que fosse, o povo a adulava, e a
Senhora Margaery fazia o que podia para alimentar seu ardor. Andava
sempre dando esmolas a pedintes, comprando tortas quentes nas
carroças dos padeiros e refreando o cavalo para falar com mercadores
comuns.
Se
dependesse dela, teria posto Tommen para fazer todas essas coisas.
Andava eternamente convidando-o para acompanhá-la e às suas
galinhas em suas aventuras, e o garoto eternamente suplicava à mãe
permissão para ir. A rainha dera seu consentimento algumas vezes,
apenas para permitir que Sor Osney passasse mais algumas horas na
companhia de Margaery. E de muito isso serviu. Osney revelou-se um
doloroso desapontamento.
“Lembra-se
do dia em que sua irmã zarpou para Dorne?” perguntara Cersei ao
filho. “Você se recorda dos uivos da turba quando voltávamos para
o castelo? Das pedras, das pragas?” Mas o rei mostrara-se surdo ao
bom-senso, graças à sua pequena rainha. “Se nos misturarmos aos
plebeus, eles gostarão mais de nós.” “A turba gostou tanto do
Alto Septão gordo que lhe desfez um membro de cada vez, e ele era um
homem santo", forçara-o a se lembrar. Tudo que conseguira tinha
sido deixá-lo emburrado. Tal como Margaery quer, aposto. Tenta me
roubar Tommen todos os dias e de todas as maneiras. Joffrey teria
visto além do seu sorriso de intriguista e a faria tomar consciência
do seu lugar, mas Tommen era mais ingênuo. Ela sabia que Joff era
forte demais para si mesma, Cersei pensou, lembrando-se da moeda de
ouro que Qyburn encontrara. Para a Casa Tyrell ter esperança de
governar, ele tinha de ser tirado do caminho. Recordou-se que
Margaery e sua hedionda avó tinham outrora conspirado para casar
Sansa Stark com o irmão aleijado da pequena rainha, Willas. Lorde
Tywin se antecipara a elas, casando Sansa com Tyrion, mas a ligação
estava lá. Estão todos juntos na intriga, compreendeu num
sobressalto. Os Tyrell subornaram os carcereiros p ara libertar
Tyrion e levaram-no às pressas estrada das rosas abaixo, para se ir
juntar à sua desprezível noiva. A essa altura os dois estão a
salvo em Jardim de Cima, escondidos atrás de uma muralha de rosas.
- Devia
ter vindo conosco, Vossa Graça - tagarelou a pequena intriguista
enquanto subiam a encosta da Colina de Aegon. - Podíamos ter passado
horas tão agradáveis juntas. As árvores estão vestidas de
dourado, vermelho e laranja, e há flores por todo lado. E castanhas
também. Assamos algumas no caminho de volta.
- Não
tenho tempo para cavalgar pelos bosques e colher flores - Cersei
respondeu. - Tenho um reino para governar.
- Só um,
Vossa Graça? Quem governa os outros seis? - Margaery soltou uma
alegre gargalhadinha - Espero que perdoe meu gracejo. Conheço o
fardo que carrega. Devia deixar-me partilhar a carga. Deve haver
algumas coisas que eu possa fazer para ajudar. Acabaria com todo esse
falatório sobre você e eu rivalizarmos pelo rei.
- É isso
que dizem? - Cersei sorriu. - Que tolice. Nunca a considerei uma
rival, nem por um momento.
-
Agrada-me tanto ouvir isso - a garota não parecia perceber que fora
golpeada. - Você e Tommen precisam vir conosco da próxima vez. Sei
que Sua Graça adoraria. O Bardo Azul tocou para nós, e Sor Tallad
nos mostrou como lutar com um bastão, como o povo luta. Os bosques
são tão lindos no outono.
- Meu
falecido marido também adorava a floresta - nos primeiros anos de
casamento, Robert eternamente implorava para que Cersei fosse à caça
com ele, mas ela sempre pedia dispensa. As viagens de caça de Robert
permitiam-lhe passar tempo com Jaime. Dias de ouro e noites de prata.
A dança que os dois tinham dançado fora decerto perigosa. Dentro da
Fortaleza Vermelha havia olhos e ouvidos por todo lado, e nunca se
podia ter certeza de quando Robert regressaria. De algum modo, o
perigo só servira para fazer que o tempo passado juntos fosse ainda
mais emocionante. - Mesmo assim, a beleza pode por vezes esconder um
perigo mortal - ela preveniu a pequena rainha. - Robert perdeu a vida
na floresta.
Margaery
sorriu a Sor Loras; um sorriso doce e fraternal, cheio de carinho.
- Vossa
Graça é gentil por temer por mim, mas meu irmão me mantém bem
protegida.
Vá
caçar, Cersei dissera a Robert meia centena de vezes. Meu irmão me
mantém bem protegida. Recordou o que Taena lhe dissera horas antes,
e uma gargalhada saltou-lhe dos lábios.
- Vossa
Graça tem um riso tão lindo - Senhora Margaery lançou-lhe um
sorriso zombeteiro. - Podemos saber qual é a piada?
- Saberá
- a rainha respondeu. - Garanto a você que saberá.
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